Publicado originalmente no Jota no dia 23 de outubro de 2023 (Acesse aqui)

Vale voltar um pouco à história. No momento em que o Supremo Tribunal Federal decide a remuneração do FGTS. Atingirá milhões, milhões de famílias.

Até 1966, quando o trabalhador completava dez anos de casa, adquiria o direito à estabilidade no emprego. Dificilmente podia mais ser demitido. Era emprego para a vida toda.

Este direito foi substituído no mesmo ano pela opção pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Criado com específica finalidade: viabilizar o Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Viabilizar o sonho do direito de propriedade para todos. Habitação popular.

Naquela época, o todo-poderoso ministro do Planejamento, Roberto Campos, combatia o “mito do subsídio”. Em linha com a teoria econômica do Consenso de Washington, lembra Luiz Guilherme Schymura, na recente revista Insight Inteligência.

Pregava que o sucesso do desenvolvimentismo liberal capitalista dependia tanto de um regime político antidemocrático, então denominado de “autoritarismo transicional”, como de um sistema financeiro concorrencial. Digamos, “puro”, sem o “mito do subsídio”. O Estado não subsidiaria ninguém.

Por isso, a remuneração legal do FGTS, ou seja, os juros do empréstimo para casa própria, deveriam ser equivalentes ao aumento do salário dos trabalhadores. Para que os mutuários, trabalhadores com renda suficiente, cumprissem com as obrigações contratuais para com o SFH/FGTS.

O equilíbrio legal garantiria o indispensável equilíbrio financeiro.

Simples assim. Nem o mutuante subsidiaria o mutuário. Nem o mutuário ao mutuante.

Juros, quando determinados pelo Estado, são atos de força. Decisões da vontade da força. Capazes de distribuir, redistribuir, concentrar ou diminuir a renda. De todos e de qualquer um.

Quando criado, o FGTS também limitou a liberdade do trabalhador de aplicar seus próprios recursos, que lhes pertenciam e eram gerados por seu trabalho. Para compensar essa limitação de liberdade, a lei estabeleceu um critério de equilíbrio. Garantiu ao trabalhador que a poupança forçada pelo FGTS seria somente aplicada em habitação popular e remunerada suficientemente para que pudesse pagar as prestações da casa própria.

No meio do caminho, o Estado autoritário, na calada da noite antidemocrática, adotou nova norma. Desfez esse equilíbrio financeiro e descarrilou o próprio FGTS. Que passou a financiar quase tudo. Infraestrutura, aeroportos, energia, rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, pontes, casas de veraneio e tanto mais.

A política macroeconômica então adotada bateu de frente com os princípios do SFH/FGTS. Diminuiu o salário. Aumentou a correção da prestação. O SFH explodiu. O Banco Nacional de Habitação também.

O resto é silêncio. Mas não para a história.

Hoje temos déficit habitacional de cerca de seis milhões de habitações. Além de em torno de 25 milhões de habitações precárias a exigir apoio do Estado. O ministro Luís Felipe Salomão indica que, pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, cerca de 50% dos imóveis no Brasil têm algum tipo de irregularidade. “A mais comum é a falta de escritura, o que torna vulneráveis 60 milhões de domicílios urbanos no país.”, anotou.

O argumento que o governo usa para pressionar o voto do ministro Luís Roberto Barroso, que procura minimamente reequilibrar o sistema daqui para frente, é que os recursos do FGTS são voltados para “fins sociais”. Como, por exemplo, financiamento de aeroporto.

Este é mais um lamento do que um argumento. Desvio de rota. O mito do subsídio parece voltar como fantasma.

Estabeleça-se, pelo menos, limite para aplicação dos recursos dos trabalhadores para projetos que lhes beneficiem diretamente: habitação popular. Dobre os atuais. Ainda será pouco.

Haruki Murakami, notável romancista japonês, diz que matar um sonho às vezes é pior do que matar uma vida. O sonho da casa própria é o principal sonho do brasileiro.