Publicado originalmente no portal Jota no dia 14 de novembro de 2022 (Acesse aqui)
Proliferou, nas eleições, novo vírus: o das fake news. Dele, surge nova doença: as narrativas fake. Qual a diferença entre um e outro? Muitas.
Ambos são males da comunicação. As fake news atingem a informação. A narrativa fake, entretanto, atinge a compreensão. Fácil perceber.
O ethos das fake news é ressignificar a informação individualizável. Deturpando, falsificando um fato, notícia, pessoa, acontecimento. É uma unidade. Intenciona, em geral, um dano instantâneo, palpável e explícito.
É contra as fake news, como unidades isoladas da mentira informacional, que o ministro Alexandre de Moraes e outros têm focado toda nossa artilharia constitucional.
Já a narrativa fake é um conjunto de informações interligadas. Sequencial ou concomitantemente. Seu ethos é implantar uma determinada compreensão coletiva. Podem até incluir aqui e ali notícias verdadeiras. Mas dentro de uma lógica própria, em geral oculta. E o resultado líquido deve ser sempre a vitória de um interesse ou poder em disputa.
Exemplo. A narrativa fake contra as urnas, contra o sistema eleitoral, incluiu uma série de fake news com outras nem tão fake. Lutou e perdeu. Já o cancelamento da memória da corrupção ainda está em pleno ar. No fundo, pretende-se ressignificar uma história, forjar nova realidade.
Ambas são novos instrumentos da luta pelo poder. Fora ou dentro da curva, diria o ministro Barroso. Perigosas para a democracia. A narrativa mais do que as news.
Fake news roubam do cidadão informação que lhe é importante. Narrativa fake assalta sua compreensão independente.
Ambas – informação e compreensão – justas e verdadeiras, verificáveis, são indispensáveis à dignidade da pessoa humana.
A dificuldade então é: como, jurídica e judicialmente, controlar, identificar, vigiar e punir a narrativa fake?
Se já é difícil definir o que seja fake news, imagine caracterizar o que é uma quadrilha que produz crimes imateriais? Que não produzem sangue ou propina. Mas que pretendem, parafraseando Chico Buarque, roubar “um pedaço de mim, metade arrancada de mim” – a liberdade de exercer minha liberdade de me compreender.
Tudo indica que as ideologias ou, como preferem alguns, a doutrina e jurisprudência do individualismo liberal são insuficientes para identificar e controlar narrativas fakes.
As fake news têm autor individualizável. A narrativa, não. Tem uma coletividade indefinida. Movente.
As fake news produzem, em geral, dano explícito e mensurável. Sobretudo quando ofendem pessoas e ameaçam instituições.
A narrativa fake ao contrário. Em geral, não é explicita. É oculta. Causa danos estratégicos coletivos. Dificílimo identificar ou tipificar autor ou vitima. Apesar de alguns magistrados, juristas e advogados estarem a tentar.
Vivemos na “infocracia”, nova arena política, jurídica, econômica e social, segundo Byung-Chul Han. Nesta sociedade das responsabilidades irresponsabilizáveis. Fluidas.
Se antes nos roubavam a vida ou o dinheiro, bens materiais, hoje, o crime penetrou dentro de nós mesmos. Pretendem roubar nossos bens imateriais. A escolha desde como e o que consumir até nosso voto cidadão.
Exemplo clássico e mundial da instrumentalização da narrativa fake foi praticado com sucesso pelo governo Bush. Na guerra ao Iraque. Para justificar esta guerra (aliás, prévia e anteriormente anunciada desde Eisenhower), inventou-se uma narrativa global fake. O Iraque já estaria fabricando ou já tinha armas nucleares.
Não adiantaram as inspeções físicas, o parecer dos cientistas, a oposição dos aliados, nem a indemonstrabilidade da narrativa. O secretário de Estado dos EUA, general Colin Powell, foi argumentar e buscar, perante o Conselho de Segurança da ONU, a autoridade que a narrativa fake não tinha. Mas precisava ter.
Chegaram até a demitir o diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas, o embaixador brasileiro José Bustani, que patrioticamente insistia em contestar a narrativa fake. Aliás, o governo bem que poderia se desculpar por não ter apoiado seu embaixador como devia.
Houve a guerra ao Iraque. O general Powell perdeu sua carreira. Perdeu sua credibilidade. Perdeu sua possível candidatura a presidente dos Estados Unidos. Perderam a guerra.
Narrativas fake, não somente eleitorais, mas sobretudo culturais e financeiras, invadem todos. Pretende-se submeter o que mais temos de precioso. Nossa dignidade como humanos. O direito de fazermos nossas escolhas livremente. A compreensão necessária para sermos nós mesmos.
Dados e fake news sem narrativa são estéreis. São como pedras retiradas das belas calçadas portuguesas. Se atiradas ao ar, podem ferir.