Publicado originalmente em 01/12/2025 na Biblioteca Virtual do Pensamento Social. Clique aqui para acessar.

 

1. Como foram os seus primeiros contatos com a obra e com o pensamento de Raymundo Faoro?

Estudava os intérpretes do Brasil. Afinal, trabalhei com Gilberto Freyre, na Fundação Joaquim Nabuco. Li obras dos principais intérpretes: Sérgio Buarque, Caio Prado, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha. Inclusive, coleciono as primeiras edições das grandes obras desses intérpretes. Por exemplo: “Os Sertões”. E “Donos do Poder”. Este foi meu primeiro contato com suas ideias. O indispensável encontro da formação jurídica com a Ciência Política.

Pessoalmente, encontrei Faoro no “Seminário de Tropicologia”, de Gilberto Freyre, do qual fazia parte. Fui um dos “perguntadores”.

Depois teria novos contatos com ele enquanto foi presidente da OAB, jornalista, líder político. Inclusive, chegou a redigir o prefácio de meu livro “A Favor da Democracia”.

Nos estudos de grandes intérpretes, encontrei Max Weber, Law and Economics. Com argumento que foi decisivo para mim: o mesmo fenômeno econômico pode ter diversas formas jurídicas (por exemplo: leasing, aluguel e compra e venda).

Influência tal que, com Cristovam Buarque, reitor da Universidade de Brasília, e eu na Fundação Roberto Marinho, conseguimos traduzir o seu “Economia e Sociedade” – de que tanto Faoro gostava.

“A Pirâmide e o Trapézio” é também fundamental. Grande tessitura esclarecedora da época e de Machado de Assis. Direito mais literatura mais sociologia política.

Com Paulo Augusto Franco, organizamos uma coletânea de artigos de jornal de Faoro da época da transição democrática: “A República em Transição”. Onde ele alerta que não funciona “criar instituições para depois inventar o povo”.

2. O que faz Os donos do poder um clássico do pensamento social e político brasileiro?

Ao contrário do que se costuma pensar, um clássico é sempre uma obra do presente. Que, mesmo ao remeter ao passado, permanece como futuro.

Em seu mergulho, Faoro centra no direito e na política, por meio da História, mas chega a tocar também a sociologia, a antropologia. Com uma recorrência, um fio condutor. São as relações patrimoniais, o patrimonialismo que nos chega hoje, nos toca. Seguirá permeando nossa História, quase que por inércia, caso nada mude esse curso.

Raymundo Faoro mostra que a concentração e o exercício de Poder não estão necessariamente nas mãos de quem governa. Sim em um estamento burocrático composto por uma elite que toma a administração e seus frutos para si.

O liberalismo, o conservadorismo, o capitalismo, a economia, as reformas. Tudo que entra na máquina estatal vira patrimonialismo. Rolo compressor.

Mostra que o Poder reside em uma massa amorfa, uma comunidade acima da sociedade, acima das premissas teóricas, que “impera, rege e governa em nome próprio, num círculo impermeável de comando”. Grupo este que se renova e tem se renovado sempre. Que “nobilita quem entra”, sejam aptos ou inaptos, seja por indicação, concurso ou nepotismo – ou pela janela!

A nossa história não acabou nem parece ter mudado de rota. A ênfase na liberdade como centro da política às vezes esquece a realidade da desigualdade como a verdadeira intérprete do Brasil. “A doutrina das elites – não o conceito – parte de um ponto de apoio: o poder está e se exerce pela minoria e não pela maioria “.

3.  Como se configura a relação entre obra e trajetória no caso de Faoro?

Raymundo Faoro era gaúcho de origem e de temperamento. Media mais de 1,90m de altura. Sua autoridade começa imageticamente. Também era advogado. Chegou a presidir a Ordem dos Advogados do Brasil durante os anos de Geisel. Lidou com a burocracia estatal, com os burocratas patrimonialistas que estudava. Via de perto o seu objeto de pesquisa no dia a dia. Conhecia “o monstro por dentro”, teria dito Técio Lins e Silva.

Fez política sem político sê-lo. Foi aos jornais. Na época da redemocratização. Praticou um jornalismo jurídico-mobilizatório. Queria se comunicar, mas, paradoxalmente, sua escrita, seu estilo, seu vocabulário tinham complexidade pouco alcançável.

Diante de uma Constituinte instituída, se opôs. Conhecia os jogos de poder da nossa história. Que liberdades poderíamos alcançar com as canhoneiras do regime apontadas à Constituinte? Como desfazer o estamento burocrático regente do país se a constituinte tinha sido instituída sob seus auspícios?

Lutou por uma constituinte originária. Entendia que a nossa seria derivada. Faoro perdeu. A nossa foi negociada e pacífica. Mesmo com constituintes biônicos, minoritários, dentro dela. Mas não houve derramamento de sangue.

O país inventou a constituinte negociada. Com altos e baixos.

Um dos motivos que talvez tenha contribuído para esta transição negociada foi a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, prometida por Tancredo Neves e implantada por José Sarney em 3 de setembro de 1985, a Comissão Affonso Arinos.

José Paulo Cavalcanti, então Secretario Geral do Ministério da Justiça e eu, em nome do Ministro Fernando Lyra, viemos ao Rio convidar Faoro para integrar a Comissão Arinos. Ele recusou.

Entretanto, durante mais de um ano, esta Comissão mobilizou o país. Houve intensa participação da mídia, da opinião pública, cada partido, cada associação, todos tinham seu projeto de constituição. Centenas talvez. Criou-se o clima necessário para participação e constitucionalização do país.

Entravamos numa intensa era da comunicação. Lider é quem cria e comanda o clima para ação. A Comissão Arinos foi a líder política do país.

4. Quais as suas possíveis contribuições da obra de Raymundo Faoro para pensar a agenda brasileira hoje?

Uma das que considero vitais é sua visão que bem distingue legalidade de legitimidade. O legal não é ipso facto legítimo. Quase quarenta anos depois da transição democrática, a Constituição brasileira ainda não é plenamente realizada: déficit de legitimidade.

O regime de 1964 esvai-se porque não conseguiu transformar a legalidade autoritária em progresso contínuo e legitimidade democrática. Temos ainda instituições estatais e sociais capturadas por interesses não republicanos. Mobilizações por intervenção militar ou estrangeira. Tentativas de Golpe de Estado.

Não resolvemos o nepotismo. Renovaram-se oligarquias. Conquistamos a liberdade. Sobretudo a liberdade de expressão. O que é fundamental. E o que não é pouco. Mas ainda insuficiente. “A Democracia Inacabada”, diria Wanderley Guilherme dos Santos.

O patrimonialismo ainda impregna a genética e a implementação das leis.

No Supremo, não há legitimidade no nepotismo judicial, na falta de respeito ao código de ética. No monocratismo. Nos pedidos de vista sem fim. Na manipulação da pauta.

Mas as lentes da legitimidade, obsessão de Faoro, ainda estão acesas.

Viva Faoro!