Publicado no jornal Jota no dia 17 de maio de 2021 (Acesse aqui)
A ambição é faca de dois gumes. Quase sempre quando alguém ambiciona cargo de escolha política, começa logo a perder sua independência. É o que infelizmente estamos assistindo. Na escolha do próximo ministro do Supremo e do procurador-geral. Com agravante. O critério maior para os dois cargos é justamente a independência.
O exemplo explícito de ambições incontidas foi a inusitada profissão de fé religiosa, disposto até a morrer, do advogado-geral André Mendonça, numa sustentação oral no próprio Supremo. Não precisava tanta promessa. Foi exagerado. Pouco tinha a ver com a pauta de julgamento. Mas era a campanha pelo cargo.
Parece ingênuo o procurador-geral Aras pedir à USP, modeladora de nossa democracia, defensora da liberdade acadêmica, que censure seus professores. Justamente o Largo de São Francisco de Valdemar Ferreira contra Getúlio, de Godofredo da Silva Telles contra a ditadura, de Fábio Konder Comparato, Dalmo Dallari, Miguel Reale Jr., Modesto Carvalhosa e tantos outros.
Será que o procurador-geral desconhece a história da USP?
Quando um fenômeno não tem aparente explicação, procure a causa, diz Talleyrand. A causa deve ser a seguinte.
O procurador-geral Aras, como quem não quer, querendo e muito, ambiciona dois cargos: ou a recondução a procurador-geral, mesmo contra a maioria dos seus colegas, ou a nomeação para ministro do Supremo. Cada vez mais difícil. O círculo presidencial não lhe é tanto afeito.
A hora da escolha é esta. O risco, inclusive de ter o amargor de experimentar que o dia do favor pode vir a ser a véspera da traição, é agora. Arriscar é preciso.
O procurador-geral sabe que o presidente é influenciado por estratégicas midiáticas. Muito governa através delas. Aras precisa dizer ao mundo que, apesar de não evangélico, partilha dos valores do presidente. Sua audiência preferencial é o presidente. E não o Comitê de Ética da USP.
Age como se dissesse: “Senhor, não somente os demais candidatos, mas eu também, compartilho de suas virtudes. Eu, lá, poderei ser você amanha.”
O procurador-geral parece ignorar o exemplo do ministro e ex-procurador-geral Sepúlveda Pertence na sua árdua tarefa de ser independente do Poder Executivo. Praticou a independência do cargo sem se submeter ao absolutismo presidencial.
Independência que teve seu melhor elogio no voto que o senador Roberto Campos, um dos executores da ditadura, lhe deu em sua sabatina do Senado: “Senhor presidente, para ser ministro do Supremo pressupõe-se saber jurídico, gosto pelo trabalho e ilibada reputação. A este senhor, que hoje está aqui como candidato a ministro do Supremo, eu tenho o desprazer de dizer que lhe faltam todas estas qualidades”.
Não faltavam. Tinha, as teve e têm.
Parece também ignorar o exemplo de Geraldo Brindeiro, chamado nos tempos de FHC de engavetador-geral da República. Aceitou com impensável paciência pernambucana em nome da liberdade da crítica. Herdada com certeza de Marco Maciel.
O procurador-geral Aras, para se manter na lembrança do presidente, está constrangendo o destemido professor Conrado Hübner, a USP e todos os professores universitários.
Aliás, em sua reclamação à USP, Aras inusitadamente elenca todos seus títulos. Não é uma usual qualificação de autoria normal. É quase uma autopromoção. É um extenso curriculum vitae formal do passado a querer desfazer as críticas contundentes do presente. Responder é preciso. Processar não é preciso.
O procurador-geral dá oportunidade a todos aqueles que defendem a liberdade de crítica, de expressão e acadêmica de reafirmá-la e fazê-la prevalecer.
Na peça o Mercador de Veneza, de Shakespeare, Shylock pergunta ao júri: “Existe ódio sem querer matar?” Na democracia, sim. Nem se tem ódio de quem critica. Nem se pretende matar sua voz.
Faça sua campanha, senhor procurador-geral. É seu direito. Mas com temperança, por favor. Temperança.