Questionado sobre os dois títulos de pós-doutorado e um título de doutor obtidos no exterior – este há menos de dez dias de sua indicação –, o desembargador Kassio Nunes Marques, até agora, teria reagido de três maneiras diferentes.

Primeiro, segundo divulgou o Antagonista, teria afirmado: “estão tentando mitigar o sucesso desta caminhada” e “diminuir seu carater e personalidade “.

Este argumento é estratégia de personalizar, fulanizar questão institucional. Escapar dela. O que não é adequado.

Quem  aceita indicação para tão alto cargo na República, aceita, desde logo, ser radiografado. Ou melhor, aceita o PetScan das suas experiências relevantes. Aceita a objetivação de sua vida profissional. Pode incomodar. Mas é assim na era da tecnologia e transparência.

O segundo argumento afirmaria que não precisa destes títulos  para ser ministro do Supremo. Tem razão. A titulação acadêmica é para concurso de professor. E não ministro do Supremo. Que exige notável saber jurídico, e não títulos específicos. Tivemos importantes ministros que, em parte devido a desafios profissionais que enfrentaram, chegaram ao tribunal apenas com o bacharelado, como Sepúlveda Pertence.

Mas este argumento também afasta o público de informações de que precisa. Não se exige mestrado ou doutorado, mas é necessário saber qual é o currículo de fato e a experiência do indicado.

Outra exigência para ser ministro do Supremo é a reputação ilibada. E a maneira como o indicado lida com as dúvidas da sociedade sobre seu currículo também constrói sua reputação.

O art. 37 da Constituição prevê como princípio basilar da administração pública a publicidade. Princípio este que os ministros do Supremo, quando aprovados, precisam aplicar a toda administração pública. A publicidade precisa começar pelo bom exemplo.

O terceiro argumento já enfrenta um pouco mais a questão. Teria havido simples erros de tradução do espanhol ou italiano. Devem ter havido, sim, em alguns casos. Mas também é argumento formal, insuficiente para escapar das informações que precisamos.

Não há erro de tradução, por exemplo, em relação a Universidade de Salamanca. A resposta da instituição foi clara. Existem ambos pós-graduação e pós-doutorado lá. Inclusive, os contratos de pós-doutorado exigem antes o doutorado. O currículo errou e não foi por tradução.

Na Universidade de La Coruña, o desembargador não teria nem feito um curso que a própria instituição chamaria de “postgrado” – em espanhol, não em português. Teria obtido apenas um atestado de participação de um curso de especialização. Não se sabe ainda se houve avaliação, qual a carga horária exata do curso e tanto mais.

Naturalmente que a nota da Assessoria de Imprensa defendendo que houve erro de tradução é tentativa de esclarecer a situação. Bom começo. Mas claramente insuficiente, e de rumo equivocado.

O que o eleitor e os senadores precisam saber é a substância. As experiências acadêmicas por trás dos rótulos sintéticos do currículo. Qual o conteúdo real destes cursos, admita-se, destraduzidos. Foram feitos em Belo Horizonte ou em Messina? Quando foram feitos? Exigiram apresentação de trabalho final? Se sim, podemos ter acesso? Foram pagos pelo TRF-1 ou pelo próprio desembargador?

Esta não é uma discussão formal. Já ficou claro que os rótulos não significam a mesma coisa para todos os países, instituições e envolvidos. É uma discussão de realidades. Pertinente a um constitucionalismo de realidades.

Qualquer professor de direito constitucional tem o dever de pesquisar, indagar, sugerir e entender o que se passa com o Supremo. Este é nosso oficio.

O desembargador poderia tomar a iniciativa de vir a público explicar e defender seu currículo. Por que estas discrepâncias?

Na Argentina, por exemplo, é exigido pelo menos quinze dias de publicidade para que qualquer um possa se manifestar sobre o candidato. Bastidor sozinho não basta. Nos Estados Unidos, o pleno currículo é imediatamente disponível.

Aqui não foi assim. A mensagem da Presidência da Repúblcia é muda. Diz que a pressa foi “em virtude do estado de calamidade publica decorrente da pandemia do coronavírus”. E não consta nenhum currículo da mensagem de indicação da Presidência ao Senado. Nada. É insuficiente.

Deve ser pressa de se aliar com o Centrão, no Congresso, e no Supremo. Que devia não deveria estar inoculado por alianças partidárias.

No Brasil, no que temos de regulação no nosso Programa Nacional de Pós-Doutorado, regido pelo MEC e a Capes para concessão de bolsas, é conceito bastante preciso. O regulamento do MEC só considera pós-doutorado depois do doutorado.

As normas para bolsas de pós-doutorado da Capes exigem (a) possuir título de doutor; (b) estar sem emprego; (c) ter currículo inscrito na plataforma Lattes.

O currículo do TRF1 não preenche nenhum dessas condições. É um currículo em espanhol , escrito em português , sobre algo que inexiste.

Qual o problema de informar que, de boa-fé, o que era pós-doutorado foi agora reduzido a um certificado de presença num seminário de poucos dias?

O grande sergipano Gilberto Amado, de nossa Academia Brasileira de Letras (e o desembargador é nordestino e precisamos de nordestinos no Supremo), dizia: “Querer ser mais do que se é, é ser menos.”

Temos visto nesta indicação para o Supremo como o querer ser mais, a ambição pelo poder e gloria fugazes, tem destruído a imagem publica de muitos ex-candidatos.

Em última instância, a ausência de esclarecimento amplo geral e irrestrito corre o risco de levantar a questão da reputação ilibada.

Os eleitores precisam saber quais dos seus representantes, os senadores, estão aprovando o indicado para o Supremo. Ministros do Supremo não caem dos céus. São também representantes políticos dos eleitores para dizer o que é justiça constitucional. Sem a qual não vivemos.

Os ministros do Supremo representam os cidadãos pela credibilidade e legitimidade que conquistam. Na indicação. Durante a aprovação e no exercício posterior.

As dúvidas sobre o currículo do desembargador já englobam pelo menos três instituições internacionais. Passa a envolver a imagem do próprio Supremo no exterior. 

A democracia tecnológica global é o mais rápido, participativo e radical dos regimes políticos. Legitimador ou deslegitimador de ambições. Mas é assim mesmo.

 

Publicado na Revista Piauí, no dia 08 de outubro de 2020.

Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/388591-2/