Entrevista concedida ao Valor, em 26.02.2018 ( Acesse aqui )

“O Supremo é o CEO das incertezas”, diz Falcão

26/02/2018 – Por César Felício – Valor

O professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Joaquim Falcão, é um dos maiores estudiosos do funcionamento do Supremo Tribunal Federal no país e um dos principais colaboradores do projeto
“Supremo em Números”, desenvolvido pela instituição de ensino.

Falcão tem observado nos últimos anos, no Brasil e no mundo, o protagonismo crescente do Judiciário, que não apenas normatiza mas interfere no curso de ações políticas. O professor registra que no Brasil as investigações que deixaram em exposição amplos esquemas de corrupção, como o mensalão e a Operação Lava-Jato, tornaram ainda mais evidentes esta proeminência.

O preocupante, em sua visão, é que o Judiciário não dirime as incertezas. Muitas vezes as suscita, com a procrastinação de decisões ou a revisão de entendimentos. Este ano estará nas mãos do Judiciário escrever a história da sucessão presidencial. Se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concorrer à presidência, a eleição brasileira adquirirá certa forma. Se não puder, outra totalmente diferente. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor:

Valor: Vivemos nesta década um momento de predomínio do Judiciário sobre os demais poderes, dada a extensão das consequências políticas da Operação Lava-Jato?

Joaquim Falcão: É preciso inserir no mundo esta questão do Judiciário como poder decisório de questões estruturais da sociedade. Por exemplo, a eleição de George W. Bush para a presidência dos Estados Unidos, contra Al Gore, em 2000, passou por uma decisão do Judiciário. Você pega a questão do Brexit na Inglaterra, a suprema corte que a Inglaterra agora tem disse que o parlamento precisa normatizar os termos do referendo. Na Alemanha, a Angela Merkel fez empréstimos a Portugal e Espanha e foi contestada, e a questão da possibilidade de emprestar ou não a poupança alemã para países em dificuldade também foi decidido na Suprema Corte. É uma tendência. Mais recentemente Obama teve uma vitória judicial em relação ao ‘Obamacare’ que favoreceu sua reeleição em 2012. O que se vê no mundo inteiro é que estamos vivendo um ‘stress’ da democracia. Cada país tem seus desafios próprios. Nos Estados Unidos e Inglaterra questões do direito civil e no Brasil, corrupção. O Judiciário naturalmente assume um papel de proeminência quando o país mergulha na incerteza.

Valor: Por que o Judiciário está relativamente blindado em relação a denúncias de corrupção, contrariamente ao que ocorre com o Executivo e o Legislativo?

Falcão: Tem dois fatores que merecem ser destacados. Primeiro é a entrada na carreira da magistratura por concurso. Eles não são eleitos, não devem nada a ninguém. E sobem por mérito. Só começam a dever quando sobem para tribunais superiores. E segundo, em geral os juizes de início são bem pagos. Nossos juízes são bem pagos, se comparados com o resto dos brasileiros, com a maioria imensa dos advogados e na comparação internacional.

Valor: O protagonismo que o Judiciário consegue na incerteza não tende a exarcerbar as vantagens corporativas? Não tende por exemplo a influenciar no julgamento que o STF fará nós próximos dias sobre a validade do auxílio-moradia?

Falcão: Quando foi criado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) uma das principais metas era o combate ao nepotismo e aos chamados ‘penduricalhos’. O corporativismo se apropriou do CNJ e mudou a percepção. O órgão que controla o Judiciário administrativamente passou a ser controlado. Redirecionaram a política do CNJ. O corporativismo foi institucionalizado. O Supremo é o CEO das incertezas sociais. Você vai ao Supremo para acabar com incertezas. Tem foro privilegiado ou não? este imposto é devido ou não? aborto ou não? Battisti fica ou vai? A função do Supremo é dirimir a incerteza. Para fazer contratos e para saber se a polícia pode ou não entrar em qualquer casa. Tudo acaba no Supremo. Mas ele cria a incerteza. Não sabe quando julga. Adia. Pede vista. Não coloca em pauta. A manipulação do tempo é um dos núcleos da incerteza. Quanto mais incerteza gerada, mais poder. “A manipulação do tempo é um núcleo da incerteza. Quanto mais incerteza gerada, mais poder”.

Valor: Concentrando o poder, o combate aos penduricalhos torna-se uma conversa sem sentido.

Falcão: Este é o núcleo da história. A manipulação processual e a impunidade dos ministros do Supremo. A corte não controla o ministro. A presidência não controla. Então o ministro tem o poder porque gere a incerteza da decisão dele sem controle de ninguém. E tem a volatilidade do conteúdo decisório.

Valor: O senhor está falando da revisão das denúncias? 

Falcão: Isso. Vai desde o que é foro privilegiada até o tema das vaquejadas. Faz 200 anos que a vaquejada é constitucional e aí deixa de ser. É a inconstância do contéudo das decisões. Eu tenho a incerteza da decisão da justiça, e a incerteza é necessária para ter poder. Se eu não preciso escolher já entre A,B e C, eu boto o ‘enter’. A incerteza deriva da incapacidade de saber o que eu vou escolher. Esta imprevisibilidade da decisão está na campanha eleitoral. Tornou-se a campanha eleitoral. Não há país nenhum do mundo em que a campanha eleitoral é feita através de recursos e decisões de tribunais. A arena política passou a ser as instâncias recursais. Esta virou a grande estratégia. Não é mais saber se é constitucional ou não. É saber que enquanto existir incerteza, pode-se fazer a campanha.

Valor: Mas no caso do Lula, há duas questões, não? a do cumprimento da sentença após a segunda instância e a do alcance da lei da ficha limpa.

Falcão: São coisas paralelas que se cruzam e que podem fomentar uma disputa interna. São coisas ligadas. O que a gente está vendo é que em uma eleição normal são partidos políticos que concorrem. Na nossa eleição são tribunais que concorrem. É o TSE que concorre com o STF, que concorre com o TRF4. Pode ser instalada uma competição intrajudicial. Um candidato a tribunal superior passa a ser visto como um candidato a cargo eleitoral. O voto dele passará a ter profundo impacto no processo político normal. Tanto que o mercado não quer saber o resultado final porque ele tem que ganhar, lucrar, na instabilidade, na incerteza. Fica um grande jogo de curto prazo. O Supremo aumenta o risco do improvável.

Valor: Este é um problema estrutural, que tem a ver com o modelo do Supremo Tribunal Federal no Brasil, ou é conjuntural, relacionado à atual composição da corte?

Falcão: Suprema corte em toda parte é política. Mas o que está influindo muito agora são fatos conjunturais. No caso Bush versus Gore, o Judiciário dos Estados Unidos tomou uma decisão política, impedindo a recontagem dos votos da Flórida, mas estabeleceu que a decisão não gerava jurisprudência. Se abrisse a porta para a contestação de toda votação eleitoral, significaria um nível de incerteza máxima. Encontraram ali uma fórmula institucional, uma solução institucional para reduzir a incerteza.

Valor: Existe o risco do processo eleitoral ficar judicializado até o fim, inclusive em relação ao resultado, o que, no limite, pode levar até à judicialização do pleito?

Falcão: Aí existem outros fatores. Os tribunais vão ser muitos sensíveis à mídia, à comunidade internacional, não pode ter um golpe do Judiciário a uma altura dessas, porque quebra a confiança dos investidores. Tem limites.

Valor: Um candidato concorrendo à presidência pendurado por liminar seria uma situação que passa dos limites?

Falcão: Bom, você teve agora mesmo na Espanha três presos que foram eleitos para o Parlamento, com o líder partidário exilado.

Valor: O senhor está se referendo aos dirigentes que tentaram separar a Catalunha da Espanha, é uma situação muito diferente.

Falcão: Eu acho que alguns freios extrajudiciais vão funcionar. Fernando Henrique uma vez falou que o mais importante nas crises é a presidência manter o poder de tomar decisões. É organizar o processo de decisão política. O Brasil precisa organizar seu processo.

Valor: Então no limite o Supremo vai deixar de ser um gestor da incerteza e neste caso decidir?

Falcão: Ao menos temporariamente (risos).