Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 10 de maio de 2001.

A vinculação do Poder Judiciário ao Poder Executivo através da indicação dos ministros do Supremo é bem mais ampla do que a discussão em torno de Gilmar Mendes. O Prof. Álvaro Jorge analisou agora em Harvard, as biografias e os critérios de  indicação dos juízes do Supremo em dois períodos distintos: o período do autoritarismo de 1964 até 1988, e o período da democratização de 1988 até hoje. Dois dados são significativos e ajudam a entender melhor esta situação.

Onde trabalhavam os ministros, perguntou o professor, quando indicados pelo Presidente? No autoritarismo, cerca de 23 % trabalhavam diretamente com a Presidência. Hoje, na democratização, este número dobrou. Cerca de 50% dos indicados trabalhavam, como Gilmar Mendes agora, diretamente com o Presidente. Mais ainda. Tanto no autoritarismo quanto na democratização, cerca de 40% dos indicados vieram do próprio Poder Judiciário. Com importante diferença. No autoritarismo, cerca de 26% vieram dos judiciários estaduais. Na democratização, nenhum. Por que este aumento de vinculação com a Presidência e desvinculação com as justiças estaduais?

O pano de fundo para entender estas mudanças é um só. Na democracia o Poder Judiciário tem mais poder, é mais independente, interfere mais na vida quotidiana dos cidadãos, empresas e instituições. Quem teme pela independência do Judiciário hoje não tem memória. Provavelmente o Brasil nunca teve um Poder Judiciário tão independente quanto hoje, em toda a sua história. Hoje ele interfere, por exemplo, nas próprias regras do processo eleitoral, como vimos recentemente, na verticalização das alianças atingindo os direitos de milhões de eleitores, decisão que alguns acreditam a favor do governo. Interfere também na economia, na correção dos saldos do FGTS de todos os trabalhadores brasileiros, decisão que alguns acreditam contra o governo. De qualquer modo, é poder imenso, nunca tido, muito menos no autoritarismo. É natural, portanto que agora, o Poder Executivo se preocupe mais com suas decisões. E queira influenciá-las. Torná-las mais previsível. Mais favoráveis as suas políticas.

Este, aliás, não é problema apenas brasileiro. Nos Estados Unidos, é mais grave. O Presidente não indica apenas os ministro do Supremo. Indica todos os juízes da justiça federal. Agora mesmo a crise está instalada. O Pres. George W. Bush resolveu indicar apenas aqueles que considera fiel, ideologicamente, as suas políticas conservadoras. O Congresso tem recusado várias indicações e adiado outras.

O que tem caracterizado as indicações aqui é que no plano pessoal, os candidatos são invariavelmente dotados de notável saber jurídico e cidadãos honrados. Esta é condição necessária, mas não suficiente. Critérios que ultrapassam a pessoa do candidato é que em geral criam a polêmica. Nestes tempos de tentativa de centralização executiva do poder, candidatos oriundos dos tribunais federais, mais íntimos de Brasília, prevalecem sobre os das justiças estaduais. Aqueles que trabalharam diretamente com o próprio Presidente, sobre os demais. Nenhum destes dois critérios determina obrigatoriamente o voto futuro. Aumentariam apenas, a probabilidade de afinidades eletivas, no dizer da moda.

Este debate sobre a vinculação do Judiciário ao Executivo, diante da tendência brasileira de só pensar o Brasil a curto prazo, com certeza vai incendiar partidários pró e contra a indicação de Gilmar Mendes, o que é bom, e depois esmorecer, o que é ruim. Seria, no entanto muito importante se este debate continuasse até se aperfeiçoar o processo de indicação dos ministros do Supremo. Existem já múltiplas propostas. Criar, por exemplo, uma quarentena prévia de três ou quatro anos, ou seja, o candidato a ministro não poderia ter trabalhado no Executivo ou no Legislativo neste período. Criar eleições diretas para ministros, pelo voto dos juízes. Estabelecer um mandato de dez anos para ministros dos tribunais superiores. Criar um sistema de quotas dentro do Supremo: uns seriam eleitos pelos juízes, outros indicados pelo Congresso e outros pelo Presidente.

Independentemente de nova legislação, algumas medidas mais simples poderiam desde logo ser implantadas. O Senado, por exemplo, tradicionalmente gasta apenas uma discreta tarde para interrogar o futuro  ministro, com a participação exclusiva dos senadores. O Senado poderia muito bem ouvir mais a sociedade. A indicação de Gilmar Mendes começa a mostrar que a sociedade quer ser ouvida. Esta audiência pública do Senado poderia ser mais extensa e com a participação de entidades da sociedade civil convidadas pelo próprio Senado. Um sistema mais proativo de divulgação e veiculação destes procedimentos através da mídia complementaria esta inovação.

O próprio Supremo poderia também dar sua contribuição, explicitando e formalizando em suas normas internas, casos em que os Ministros seriam impedidos de ofício em participar dos julgamentos. Com isto neutralizaria a influência daqueles que tivessem trabalhado diretamente no Poder Executivo interessado na matéria. Desestimularia também a tendência de candidatos com vinculação direta com o Presidente.

Com a crescente importância do Supremo em nossas vidas, a tendência é a maior mobilização e polemização destas indicações. Não apenas o Poder Executivo quer influenciar. A sociedade também. O desafio é como estimular este processo de forma construtiva para a democracia. O que está em jogo não é o destino futuro de um Presidente da República e suas políticas. O que está em jogo é a credibilidade do Supremo, sem a qual, democracia não há. De resto, não custa lembrar: o próximo presidente, se reeleito e governar por oito anos, poderá fazer folgada maioria no Supremo por pelo menos outros vinte anos. A hora de aperfeiçoar o sistema de indicações é agora.