Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 20 de agosto de 2002.

O debate eleitoral está tomado pela discussão financeira, como única responsável pela vida ou sobrevida do país. Pelo passado e pelo futuro. É como se o Brasil de repente fosse apenas um imenso déficit. Um passivo imobilizado. Sobra pouco tempo e espaço para outras questões, também fundamentais, como a da cultura, por exemplo.

Ao desenhar nova política cultural, o primeiro desafio de um novo presidente poderia ser avaliar se a atual organização do governo federal -instituições e legislação – é ou não adequada aos novos tempos. Por motivo simples: vivemos ainda a matriz implantada em 1937, no Estado Novo, por Getúlio Vargas e Gustavo Capanema. E fragmentadamente modificada pela reforma dos anos 70, com a então Fundação Nacional Pró-Memória, pela Lei Sarney, hoje Rouanet, e pela criação do próprio Ministério da Cultura.

Será esta matriz capaz de lidar com as imensas transformações que ocorreram nas últimas duas décadas? Pelo menos três grandes transformações ampliaram as dimensões e a importância da cultura para o governo e para o país.

Primeiro, cultura é comunicação. Um viés tecnológico limitou a questão da comunicação social no Brasil ao Ministério das Telecomunicações. Limite grave e danoso. Não se pode pensar a cultura brasileira hoje sem o fundamental papel da televisão. E televisão não são apenas concessões, cabos e fios. É, sobretudo, conteúdo. E conteúdo é cultura. Não se pode pensar a televisão sem pensar o impacto que ela provoca em nosso ser, saber e fazer. Sem pensar na proteção e no estímulo governamentais a um conteúdo televisivo brasileiro.

O Ministério da Cultura não tem recursos, instrumentos ou diretrizes para nenhuma ação nesse sentido. É quase um telespectador anônimo. Nestes tempos de globalização, talvez esteja nesse conteúdo o sucesso ou o fracasso da identidade cultural do país. A França lamenta até hoje uma política cultural errada. Tenta agora, talvez tarde, desesperadamente, desamericanizar sua televisão. Estavam substituindo o “savoir faire” pelo “american way of life”, em nome de uma globalização que é apenas americanização.

Segundo, cultura é emprego. Não se separa mais o potencial econômico da cultura da defesa e expansão de nossos valores, nossas artes, nosso patrimônio, nossa música, teatro e cinema, nossa gastronomia, nosso saber e nosso fazer. Hollywood que o diga e exemplifique, um produto cultural de exportação dos Estados Unidos de inestimável valor econômico e estratégico.

Celso Furtado disse certa feita que a cultura de um povo expressa a qualidade de seu desenvolvimento. Ou seja, a perspectiva econômica nos diria da dimensão quantitativa do desenvolvimento, e a perspectiva cultural, da dimensão qualitativa. Faces da mesma moeda. Infelizmente, não temos nem mesmo dados estatísticos para orientar uma ação. Salvo o esforço de pesquisa de José Álvaro Moisés e a excelente disposição da Fundação Casa Rui Barbosa em ser um “Ipea” do Ministério da Cultura, estamos a pé e no escuro. Diógenes sem lâmpada.

Finalmente, cultura é democracia. E democracia é mobilização e participação dos cidadãos na produção e difusão cultural de sua comunidade. Uma linguagem meramente burocrática e administrativa diria que é preciso descentralizar a gestão cultural federal. Isso é outro problema. Não cabe ao Estado fazer cultura. Cabe ao país e, sobretudo, às nossas comunidades. Cabe ao governo criar condições para mobilizar a comunidade. Isso é mais do que uma reforma administrativa. Para tanto é necessário que a comunidade se organize através das entidades do terceiro setor. E o governo viabilize a existência e a expansão dessas nossas entidades de cidadania.

A cultura como um grande movimento, capaz de entusiasmar não só as grandes empresas, mas também o cidadão comum, as casas, os bairros, as comunidades, a cidade e o país, é o maior desafio. É consolidar a democracia. Receio que o governo federal, quando tem essa visão, não tem os instrumento necessários. A Lei Rouanet, como está, não estimula essa participação democrática. Ao contrário, proíbe o cidadão individual de ser um ativo financiador de sua comunidade.

O debate cultural eleitoral é o momento propício para as reivindicações legítimas dos grupos de interesses, mas deve ir além. É também o momento para o país avaliar a adequação ou não entre as instituições e instrumentos do governo federal na área cultural e a invenção, criação e consecução do novo, que todos queremos. E de que precisamos. A partir daí, é elaborar as propostas que conjuguem o ideal com sua prática possível.