Entrevista concedida para a Revista Época, em 05.12.2015

Professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro e ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o jurista Joaquim Falcão segue com lupa o universo jurídico brasileiro. É um dos mais corajosos e críticos analistas da Justiça e do Supremo Tribunal Federal (STF), liderando pesquisas que revelam verdades inconvenientes sobre temas espinhosos, como a falta de transparência do Judiciário, salários de juízes e a morosidade dos ministros do STF. Nesta entrevista a ÉPOCA, Falcão questiona a legitimidade do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, de autorizar o processo de impeachment de Dilma Rousseff enquanto é investigado pela Operação Lava Jato. Para Falcão, o impeachment é instrumento legal, não golpe, mas é “o ato mais grave” da democracia e exige muita prudência.  “O risco de um impeachment presidencial mal explicado é seu efeito cascata, sua verticalização” para as esferas estadual e municipal. No limite, levaria à insegurança e à instabilidade política geral. Ele lembra que o processo está nas mãos dos deputados e senadores, e que eles decidirão com um olho em suas bases.

ÉPOCA – O senhor escreveu artigos em que afirma que retirar o presidente da República é o ato mais grave do regime democrático e exige prudência.
Joaquim Falcão – É verdade. É o momento máximo em que as leis encontram os interesses políticos mais contraditórios.  Toda prudência é pouca. Estamos no reino das incertezas. Sobretudo neste caso, em que dois fatores extras tornam o Direito e a política imprevisíveis: o necessário processo da Lava Jato e os desnecessários mais de 30 partidos políticos.

ÉPOCA – Por que o senhor questiona a legitimidade do presidente da Câmara para abrir o processo de impeachment?
Falcão – São três Eduardos Cunhas: o cidadão, o deputado e o presidente da Câmara. Cada um com responsabilidades, direitos e deveres distintos. Diante da possibilidade inaugurada pelo Supremo de prender congressistas, o cidadão e o deputado Cunha devem ter se sentido ameaçados pelas acusações que se anunciam. Sua reação revela a coragem dos que têm medo. Confundiram-se os três Cunhas. A prerrogativa de definir a pauta da Câmara – prioridades, tempos de votação, encaminhar ou não pedidos de impeachment – não é nem do cidadão nem do deputado. É do cargo de presidente da Câmara. Esse cargo tem de estar a serviço do interesse público. É prerrogativa impessoal. Não pode ser usado para defender os interesses privados do cidadão Cunha, que está sendo investigado.

ÉPOCA – Cunha cometeu o crime de prevaricação ou coação no curso do processo ao aceitar a abertura do pedido de impeachment? Ofendeu o princípio constitucional de separação dos Poderes?
Falcão – Essas e outras possibilidades, como improbidade administrativa, são hipóteses já levantadas por juristas, políticos, redes sociais e mídia. Janaína Paschoal, que também subscreveu o pedido de impeachment, alegou que Cunha estaria cometendo prevaricação ao atrasar propositadamente sua apreciação. O importante é separar a legalidade ou não da conduta de Cunha ao tratar do impeachment do destino do próprio pedido de impeachment. Inexiste automática causalidade entre um e outro – por exemplo, se Cunha agiu ilegalmente, então o processo pararia ou seria anulado. Pode ser que sim, pode ser que não. O destino de Cunha e o destino do processo não estão necessariamente ligados. O processo pode continuar. Quem vai decidir é o Supremo.

ÉPOCA – Existem motivos e legitimidade para a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma?
Falcão – O pedido encaminhado pelos advogados paulistas a Cunha inicialmente só relatava fatos ocorridos em 2014. Os autores perceberam, então, que fatos da gestão anterior poderiam não justificar o impeachment. Iam perder. Refizeram o pedido e incluíram atos deste mandato de 2015.

ÉPOCA – Pedaladas fiscais de 2015 podem ser consideradas o ato inadequado que justifica o impeachment?
Falcão – Custo a crer, por dois motivos. Primeiro, matéria financeira orçamentária é da competência inicial do ministro Joaquim Levy. Dificilmente acredito que ele, respeitado e experimentado economista, deixaria a presidente Dilma assinar um ato ilegal sem reagir. Segundo, o Orçamento de 2015 está a meio caminho. As contas não fecharam ainda. Provisões que inexistam hoje podem existir amanhã. O próprio presidente Eduardo Cunha diz que a apreciação do Orçamento é competência do Congresso, e não do TCU. Mas essa apreciação tem rito próprio, que ainda não aconteceu. O cenário ainda não está completo. Paradoxalmente, os argumentos de Cunha facilitarão a defesa da presidente.

ÉPOCA – O senhor tem conhecimento de algum caso de impeachment no mundo provocado por crime de responsabilidade fiscal?
Falcão – Problemas orçamentários e fiscais são rotina no mundo. Obama ficou sem Orçamento aprovado em 2013, quase imobilizado, por causa da disputa política entre democratas e republicanos. Foi resolvido na última hora, pela mediação e negociação democrática, em prol dos interesses maiores da economia americana. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional colocou limite para Angela Merkel gastar no apoio aos gregos e espanhóis. Assim protegeu o Orçamento alemão. O impeachment no Brasil representa justamente a falência da política como mediação e negociação democráticas diante de um Orçamento que é quase sempre peça de ficção. Atinge a Presidência, o Congresso, os partidos e seus próprios líderes. Todos saem perdendo. A desilusão da opinião pública com a política resulta dessa falência.

ÉPOCA – O impeachment é instrumento democrático de retirar do poder um governante incompetente ou mau gestor?
Falcão – Retira-se um governante incompetente pelo voto e pela alternância no poder. Pedir impeachment e o Congresso decretá-lo é um direito previsto na Constituição. Não é golpe. Mas o risco de um impeachment presidencial mal explicado é seu efeito cascata, sua verticalização. De agora em diante, qualquer prefeito ou governador eleito terá dificuldades para governar se a conjuntura política não for favorável. Vão querer impedi-los também?

ÉPOCA – Em quais circunstâncias o Supremo poderia barrar esse processo? 
Falcão – No impeachment de Collor, o Supremo foi quase pego de surpresa. Um Supremo que participou do processo como um “convidado resignado”, como lembra o professor Ivar Hartmann. Mas, hoje, muitos ministros do Supremo estão ansiosos para intervir – o que é ruim. O Supremo é um órgão político, mas não pode ser politizado.

ÉPOCA – Como o Supremo interviria?
Falcão – Se seguir a tradição, o Supremo não vai entrar no mérito dos atos da presidente. Esta é matéria do Congresso somente. Mas vai interferir, e muito, em como as decisões do Congresso estarão sendo tomadas. Respeitam o direito de defesa? Respeitam o contraditório e os prazos? Respeitam as competências regimentais? Como já fizeram nesta semana, aliás. Serão tempos de incertezas, sim. Mas que sejam rápidos. E que as instituições funcionem. O país, sua economia e sua esperança estão sangrando.

ÉPOCA – O Congresso então decidirá sozinho a legalidade ou a ilegalidade dos atos da presidente Dilma?
Falcão – Sim. E os congressistas estarão atentos às eleições municipais do próximo ano. Como afetarão seus próprios mandatos, suas bases? Vão querer estar sintonizados com os eleitores. Neste momento, o voto aberto no plenário e nas comissões será decisivo. Mas ainda não está decidido.

ÉPOCA – A crise atual é mais política que econômica?
Falcão – Em recente conferência na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, o prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz fez uma observação que pode ser útil ao Brasil de hoje. Ele afirmou que o período de maior sucesso do capitalismo foi logo depois da Segunda Guerra Mundial. Não apenas devido à política econômica que os países vitoriosos implantaram. Mas porque, naquele período, o Ocidente convergiu para um objetivo comum: democratização do poder e solidariedade aos cidadãos e aos países que tudo perderam. Solidariedade aos então desesperadamente despossuídos. Precisamos retomar nosso objetivo comum. O país está partido.