Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 01 de novembro de 2003

O primeiro é o seguinte. O único responsável por prover recursos para o bom funcionamento do Poder Judiciário é o Estado. É o Orçamento público. Recursos para salários e aposentadoria dignos, para um número suficiente de juízes capacitados a atender, além de instalações e meios adequados. Dessa responsabilidade não podem Executivo, Legislativo e Judiciário se eximir. É crime contra a democracia.

Dizer que é responsabilidade única é dizer que não pode ser delegada a ninguém. O que não implica a proibição do cidadão de colaborar com o Judiciário, com recursos financeiros, serviços ou em espécie. Inexiste proibição legal ou ética. É contribuição legalmente voluntária que não substitui aquela. Acresce. Às vezes é também dever de cidadania.

Segundo, acreditar, a priori, que recursos voluntários, privados ou comunitários necessariamente interferem na independência do Poder Judiciário beira o radicalismo. Menospreza a imensidão do poder que hoje o Judiciário tem: o poder da última palavra, sobre tudo e todos. Desconsidera a consolidada evidência histórica de juízes independentes. Raras as exceções, estatisticamente inevitáveis, quando tratamos da condição humana. Recentemente um juizado especial federal itinerante deslocou-se até uma comunidade para julgar pequenas causas contra o INSS, a Previdência etc. Não tendo prédio próprio, aceitou e se instalou por alguns dias no imóvel privado de um clube da terceira idade local. Será que o fato de o juiz estar sentado na cadeira de uma das partes, dos idosos, fê-lo decidir em favor deles? Duvido. Não foi o caso. A itinerância foi um sucesso de celeridade e de justiça.

Terceiro, o Poder Judiciário tem mecanismos eficazes para afastar influências indevidas, seja de recursos privados, governantes, mídia, sua família, de quem for. O duplo grau de jurisdição, a possibilidade de a sentença ser revista, as decisões em equipes, com os tribunais, câmaras, colegiados etc. E, “last but not least”, a possibilidade de o juiz se julgar ou ser considerado impedido para apreciar um pleito em que existam interferências indevidas. Esses mecanismos têm funcionado.

O Judiciário já tem parcerias com entidades do Executivo, empresas privadas, universidades, mídia, entidades comunitárias e terceiro setor. Prefeitos e governadores não raramente cedem e pagam funcionários seus para auxiliar o Judiciário local. Empresas privadas financiam congressos, seminários, cursos, publicações, doam equipamentos, tecnologia, bibliotecas. A mídia apóia campanhas, como a dos juizados itinerantes. Universidades privadas cedem locais a juizados e alunos para trabalho voluntário. Até hoje, desconheço qualquer acusação contra juiz, associação de magistrado ou tribunal em razão dessas parcerias. Negar essas parcerias radicalmente é ter fobias antidemocráticas.

O quarto pressuposto é uma constatação. O mundo não se divide mais em recursos do governo, de um lado, contra recursos de empresas com intuito de lucro, de outro. Aqueles, o bem, e estes, o mal. Recursos públicos não são exclusivamente governamentais. O interesse público no século 21 soma o esforço estatal com o privado e o comunitário. Somente quem reduz a sociedade brasileira ao mercado selvagem e idolatra a malignidade intrínseca do interesse individual não percebe as inúmeras áreas de convergência que podem unir o estatal e o privado em torno da Justiça. O Brasil precisa deixar de suspeitar do Brasil.

Isso posto, a pergunta é: como maximizar a cidadania, individual, empresarial ou comunitária para apoiar ações estatais, privadas e comunitárias, de interesse público, em favor de um Judiciário administrativamente mais eficiente e socialmente mais abrangente?

Duas áreas de convergência são possíveis. A modernização administrativa, a busca da maior agilidade, sobretudo na informatização e universalização das melhores práticas gerenciais criadas pelos próprios juízes. E a permanente atualização e capacitação administrativa dos juízes com encargos gerenciais. As diretrizes indispensáveis para esse apoio são próprias da democracia: o interesse e a necessidade pública específica, a transparência e publicidade das ações, a discussão entre os interessados. E, como limite maior, o total respeito à independência jurisdicional do juiz.

O Brasil deseja, quer, aliás, precisa de mais Judiciário, e não de menos. De mais sentenças, mais juízes, mais celeridade, mais justiça. A sociedade é parceira legítima. Precisamos de um Judiciário maior. Colaborar com esse ideal democrático é dever de todos.