Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 21 de fevereiro de 2003.

Há algo aparentemente inexplicável no ar. Todo mundo é a favor da reforma do Judiciário. Mas ela não acontece. O problema deixou de ser a lentidão do Judiciário e passou a ser a lentidão da reforma. Hoje, precisamos de um diagnóstico sobre a lentidão da reforma, antes de um sobre a lentidão do Judiciário. Por que não acontece? Há um impasse que se renova a cada relator de cada novo anteprojeto. Essa é questão crucial para o ministro Márcio Thomaz Bastos, que, corretamente, elegeu a reforma do Judiciário como uma prioridade de sua gestão.

A lentidão da reforma deve-se, é claro, à complexidade do problema e à intensidade dos interesses em jogo. Mas talvez se deva também à atual estratégia. Que estratégia é essa?

A meu ver, é uma estratégia que prioriza a dimensão legislativa: a necessidade de novas leis. O que é fundamental, mas não pode ser exclusivo. Prioriza também uma tentativa, até agora infrutífera, de conciliar os interesses dos profissionais jurídicos: juízes, advogados e procuradores. O que é fundamental, mas insuficiente. É preciso uma nova estratégia, que amplie a participação social na reforma e privilegie outras dimensões, como a gerencial. Quando pensamos assim, surgem grandes novidades. Vemos uma reforma silenciosa da Justiça já em andamento.

No Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça e a Telemar, sob a inspiração da ministra Fátima Nancy, do STJ, desenvolvem experiência inédita. Entre 1998 e 2002, a Telemar investiu R$ 19,5 bilhões. Aumentou de 8,8 milhões para 18 milhões as linhas instaladas _perseguia a meta da universalização da telefonia. Nessa fase de crescimento acelerado, alguns serviços prestados sofreram queda de qualidade. Usuários foram então reclamar nos juizados especiais. Estima-se que existam hoje ali cerca de 60 mil processos contra a Telemar. Em vez, porém, de seguir o curso tradicional e contestar cada uma das reclamações, o desafio do departamento jurídico foi desenhar um atendimento de massa. A partir daí, inova-se de diversas formas.

Criou-se, por exemplo, um mutirão de execuções nos juizados especiais. Os advogados pesquisam os cartórios, analisam esses 60 mil processos, buscam reduzir esse estoque para desafogar o Judiciário. Conferem a razoabilidade do pleito e, se este foi originário do período de rápido crescimento, propõem solução imediata. O resultado tem sido cerca de 6.000 soluções por mês. Desafogará os juizados neste ano. Trata-se na verdade de uma espécie de recall. A Volkswagen faz agora, por exemplo, um recall de 1 milhão de automóveis. A Telemar, por analogia, em vez de fazer recall de um produto, faz um recall de serviços.

Criou-se, também com o tribunal do Rio de Janeiro, o projeto Expressinho, para prevenir processos judiciais. Ao chegar ao juizado, o usuário é antes encaminhado a um representante da Telemar de plantão no local. A simples troca de informações mútuas entre usuários e empresa abre caminho para a solução de cerca de 600 casos por mês, que deixam de entrar no Judiciário. Só 10% dos casos não chegam a uma solução. Obtêm-se soluções antes da conciliação, sem qualquer intervenção judicial.

Esses exemplos são importantes porque partem de uma lógica diferente de reforma do Judiciário. Primeiro, existe uma reforma que não precisa de novas leis. Segundo, a reforma não é tarefa exclusiva do governo. É das empresas também. No caso, rompe-se com uma advocacia tradicional, inova-se na advocacia empresarial de massa, de menores custos, trazendo, com certeza, benefícios palpáveis para a imagem da empresa. Terceiro, sem abrir mão de seu poder judicante, que se mantém como referencial maior, o tribunal apóia formas pré-processuais que lhe desafogam, lhe diminuem os custos e o reservam para as questões jurídicas fundamentais. o tribunal passa a usufruir de importantes ganhos de imagem. Aumenta sua legitimidade diante das classes populares tão descrentes quanto necessitadas de eficiente administração de justiça.

O tribunal do Rio de Janeiro pretende estender o Expressinho a outras empresas, sobretudo às de cartão de crédito e de energia elétrica, responsáveis, com as de telefonia, pelo maior número de reclamações dos usuários. Empresas proativas que inovem no atendimento pré-processual dos direitos dos usuários podem ser aliados fundamentais para desobstruir a Justiça. Para uma reforma silenciosa, que, por sua própria natureza, é múltipla e diversificada, de responsabilidade do governo e da sociedade também.