Publicado originalmente na Folha de São Paulo, no dia 20 de dezembro de 2001.

Contra fatos não há argumentos. A criação dos juizados especiais foi um passo fundamental para que o brasileiro tivesse maior acesso a uma Justiça ágil e justa. Ninguém pode negar. Atendeu a uma demanda social e dignificou o Judiciário. Criados na década de 70, hoje são centenas, atendendo diariamente a milhões de brasileiros, sobretudo os mais pobres.

Pois bem, quem criou esses juizados, então chamados de juizados de pequenas causas, não foi um juiz, um advogado ou um procurador. Foi um administrador de empresas preocupado com a desburocratização: Hélio Beltrão – contando com o apoio do Congresso.

Se tivéssemos ficado na dependência do Poder Judiciário, provavelmente não os teríamos. O presidente do Supremo Tribunal Federal na época, ministro José Carlos Moreira Alves, fazia campanha contra os juizados. Franca, erudita e lealmente defendia não haver justiça sem duplo grau de jurisdição. A OAB, por sua vez, era contra a dispensa de advogados. Ainda bem que Beltrão e o formulador da lei, Piquet Carneiro, contaram com muito apoio, inclusive de ex-ministros do Supremo, como Vítor Nunes Leal, de professores, como Miranda Rosa, depois presidente da Associação Brasileira de Magistrados, e de um aguerrido grupo de juizes gaúchos.

A defesa do juizado era simples. O que é preferível, uma Justiça de um grau só ou Justiça nenhuma? Ou seja, o juiz julgar só uma vez ou deixar o cidadão por conta da lei do mais forte, da violência e da injustiça? O ótimo é inimigo do bom.

No momento em que o parecer do senador Bernardo Cabral (PFL-AM) sobre o projeto de reforma do Judiciário, que entra em reta final, aprova a criação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), relembrar esses fatos é fundamental. Por um motivo simples. O conselho não vai interferir na função jurisdicional do Poder Judiciário, mas vai interferir, sim, no seu desempenho administrativo e gerencial. Seu objetivo maior é ampliar o acesso à Justiça e torná-la mais rápida.

Ao recomendar a criação do CNJ, Cabral sepulta uma discussão e suscita outra: sepulta o argumento de que o conselho viria a ferir o princípio da independência do Judiciário e suscita a discussão sobre quem integraria esse poderoso conselho. A questão básica na criação do CNJ não é mais sobre a independência dos juízes. Tentar transformar sua criação numa discussão sobre a independência do Judiciário faz mal ao país e ao próprio Judiciário.

Fica claro agora que a independência do Judiciário não é um fim em si mesmo. É apenas um meio de assegurar a liberdade do cidadão. O que uma democracia menos precisa é de Poderes absolutamente independentes, seja Judiciário, Legislativo ou Executivo. Um Poder absolutamente independente, por mais bem-intencionado que seja, acaba ferindo a liberdade dos cidadãos.

De resto, o parecer de Cabral segue uma tendência mundial. Outros países também já adotam o conselho. Nem por isso são menos democráticos do que o Brasil. Nem seus Judiciários menos independentes. A Espanha , por exemplo, acaba de realizar um “Pacto pela Justiça”, criando o Conselho Geral do Poder Judiciário.

A polêmica, a disputa política, passa a ser sobre a a composição do CNJ. Cabral dele eliminou os procuradores. Só inclui juízes e advogados. Não ficam claros os seus motivos. Uma visão pontualmente mais sensível pode acreditar que seja uma maneira de controlar os excessos dos procuradores, que, nos últimos anos, no exercício de suas atividades, extrapolaram alguns limites do devido processo legal. Essa exclusão, porém, não se justifica no longo prazo, sobretudo ante a presença dos advogados.

Outra questão relevante é a de como evitar um eventual viés corporativo, já que todos – juízes, advogados e procuradores – têm interesses profissionais específicos. Seria importante, por exemplo, a presença de membros sem vinculações a interesses diretos e a de detentores de uma experiência profissional administrativa que os profissionais jurídicos não detêm necessariamente. Como, por exemplo, especialistas de notório saber gerencial. Um ou dois “Hélios Beltrões”, capazes de imaginar o novo, como a dupla Beltrão e Piquet Carneiro fez com os juizados especiais. A tarefa imediata principal do conselho, repetimos, será ampliar o acesso e a rapidez das decisões.

A discussão será fortemente centrada em modernos mecanismos de administração. Isso sem falar na informática, que deverá ser um instrumento fundamental na reforma administrativa. O país e o Judiciário só teriam a ganhar com uma participação mais diversificada no futuro CNJ.