Publicado originalmente na Folha de São Paulo, no dia 23 de abril de 2001

O ofício do advogado-geral da União, Gilmar Mendes, ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Carlos Velloso, sobre a prática dos ministros de dar declarações em “off” à imprensa suscitou pelo menos dois problemas. Primeiro, estaríamos diante de indevida ingerência do Poder Executivo no Poder Judiciário. É a mordaça, um problema entre instituições. Segundo, precisaríamos saber das maneiras e dos limites dos pronunciamentos públicos dos ministros fora dos autos. É um problema de funcionamento da instituição. Ambos são problemas legítimos e importantes para o Brasil.

Ultimamente, muitas questões que dizem respeito à implementação da justiça são entendidas quase que exclusivamente como problemas interinstitucionais. O que rapidamente conduz ao impasse, ao desgaste público e à não-solucão. Os exemplos são muitos. A nomeação da corregedora-geral da União, Anadyr Rodrigues, seria uma indevida ingerência do Executivo na área do Ministério Público. Correspondências técnicas sobre orçamentos e tetos salariais do Judiciário seriam indevidas ingerências do Poder Executivo no Judiciário. Projetos de lei sobre o comportamento do Ministério Público, seriam mordaças do Congresso no Ministério Público. E por aí vamos. Estamos vivendo uma era de hipersensibilidade institucional.

Numa perspectiva histórica, menos circunstancial, essa hipersensibilidade se justifica. Nas décadas de 60 e 70, o Executivo tudo queria abarcar. Tudo era conspiração do Executivo contra  o Legislativo e o Judiciário. E muitíssimas vezes foi assim. Mas o Brasil mudou.

Nem todos os novos problemas que surge resulta necessariamente de uma conspiração interinstitucional. Podem apenas fazer parte da zona cinzenta natural a qualquer jovem democracia. E ocorre sempre que o desempenho institucional e os limites interinstitucionais não estão ainda consolidados pela prática. Não custa lembrar: nossa constituição é jovem. É de 1988. Estamos na fase de construção das instituições. Fase do “institutional building”, como se diz em inglês. Não se constroem instituições e democracia instantaneamente. Essas indefinições – quem faz o quê? como? -, são zonas cinzentas naturais.

Não são necessariamente crises. São tarefas a enfrentar. Adaptações de convivência. Problemas a solucionar. Pelo diálogo, pelo debate e pela busca de soluções – buscando a experiência de outros países e inventando as nossas.

Sobre as manifestações públicas de ministros de tribunais superiores, por exemplo, existe uma praxe consolidada em vários países. Quando se trata de matéria jurídica, os ministros falam nos autos, nos livros, nos artigos e nas conferências. Nesses momentos mais estudados, eles são livres para assumir posições em tese. Inexiste o “off”. Quando precisam falar sobre assuntos administrativos ou legislativos, por exemplo, as soluções variam. Há poucos anos, o atual Presidente do Supremo, ministro Carlos Velloso, tratou do tema com o “Chief Justice” Abrahanson, de Wisconsin, EUA. Lá existe o cargo de secretário-geral da Suprema Corte, que transmite ao público e aos demais poderes a posição do Supremo estadual sobre temas não jurisdicionais. Expressa, sem polemizar, a posição da Corte.

 A autoridade do Judiciário não reside nas armas ou no dinheiro. Nem, com certeza, no uso ou manipulação da mídia. Reside na legitimidade que tem diante de seus cidadãos. Uma legitimidade que é da instituição e de cada ministro individualmente. Isso exige um certo recato, um certo distanciamento, um certo rigor no pronunciar-se e, sobretudo um não-envolvimento no dia-a-dia dos conflitos, sejam jurisdicionais, políticos ou administrativos.

Tratar de inevitáveis questões novas, como o “off” dos ministros, como conflito interinstitucional, pode até ser um crivo inicial de segurança da independência institucional. Mas não deve ser o fim. É preciso não obscurecer o problema real nem transformá-lo em disputa pessoal entre líderes judiciais. A condição humana de nós todos torna os conflitos de personalidades são inevitáveis, mas eles não devem prevalecer.

Seria importante que o Brasil soubesse o que o Supremo e os demais tribunais pensam do fato de seus ministros darem contentemente declarações em “off” à imprensa. Se isso é uma prática aceita pelos ministros. S é uma iniciativa individual ainda não devidamente pensada e regulada internamente. Se isso deve ser estimulado, proibido ou desconhecido. Se contribui ou não, ao longo prazo, para a respeitabilidade e para legitimidade do Judiciário.

Acredito pessoalmente que não. No mínimo, é uma faca de dois gumes. Como disse Norberto Bobbio: “A regra da democracia deve ser a publicidade, e não o segredo. A luz, e não a escuridão. O palco público, e não o bastidor individual”. E, queira-se ou não, na prática do anonimato existe a suspeita de que o que foi dito não deveria ter sido dito.

Isso pode transformar os tribunais em autofágicas arenas de gladiadores mascarados. O bom repórter vai sempre buscar depois do “off”, o “contra-off”. Um ministro contra outro. O contraditório de primeira página é a ambição recôndita de todas perguntas de todos os jornalistas. O “off” protegeria o ministro? Talvez. Mas é bom lembrar, que o “off” também vaza. De qualquer modo, não protegeria a instituição.

O que não quer dizer que em situações de ingerências por parte de qualquer poder – ou mesmo de necessidade de se clarear posições administrativas, orçamentárias ou legislativas -, o Judiciário esteja condenado ao silêncio e ao flagelo. Longe disso. Quer dizer apenas que nossos tribunais, dentro da autonomia que a Constituição lhes assegura, deveriam se inovar institucionalmente. Criar instâncias, situações e lideranças institucionais, não- jurisdicionais, que falem com autoridade e os defendam com vigor. Sem expor o Supremo e os ministros, evitando que sejam colocados na arena das circunstâncias políticas ou usados como matéria-prima da mídia descartável. O que dificilmente lhes acresce, individual e institucionalmente, em legitimidade.