Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 22 de março de 1983

Foi difícil chegar até esta data. Olinda não conseguiu nada de graça. Foi sempre muita luta. Sobreviveu mais de 400 anos por impertinência. Foi saqueada por piratas. E sobreviveu. Foi cercada, tomada e incendiada por holandeses. E sobreviveu. Fez a guerra dos mascates, batalhou os recifenses. E sobreviveu. Entrou em fase de grande decadência econômica. E sobreviveu. Sobreviveu até hoje justamente pela capacidade de dar a volta por cima e tirar proveito da advertência. Por exemplo, este título de Patrimônio da Humanidade, que ontem recebeu do diretor geral da Unesco, Amadou-Mahtar M’Bow, foi muito ajudado pela decadência econômica e desprestígio político do município. Que nestes últimos cento e cinqüenta anos protegeu Olinda da especulação imobiliária, do modernismo anti-histórico e do mimetismo sulista. Quase em silêncio, Olinda atravessou incólume a estes e a outros riscos. Até a década de sessenta, quando uma mentalidade de preservação histórica e um revigoramento artístico-cultural pouco a pouco toma conta de todos.

Pelos padrões europeus, Olinda dificilmente seria patrimônio universal. Valeu foi o encontro do senegalês Amadou M’Bow com o brasileiro Aloísio Magalhães, homens do Terceiro Mundo. Aloísio, a perceber que o prestígio internacional da cultura brasileira já é proporcional à sua capacidade de assumir as perfeições e imperfeições do Terceiro Mundo. Amadou M’Bow, a recusar, em sua gestão à frente da Unesco, fazer como os greco-romanos, que dividiam a civilização em duas: os civilizados e os bárbaros. Civilizados eram os europeus. Bárbaros eram os outros. Como nós, aqui no sul do Equador.

Arquitetonicamente, Olinda é uma bagunça. Uma heresia. Ao contrário de Ouro Preto e Tiradentes, Cuzco no Peru, Óbidos em Portugal ou São Geminiano na Itália, nada aqui é homogêneo. Não existe compromisso com único estilo ou época arquitetônica. Tem-se de tudo. Na mesma ladeira, um sobrado do século 19 convive com uma casa do século 17. Ao lado das duas, está uma porta-e-janela do século nenhum. E se você é muito exigente, constata que o sobrado não é absolutamente do século 19. É antes uma mistura, sempre agradável e viva, de vários séculos amontoados. Dada janela é no mínimo cem anos mais velha do que a outra. É justamente este mal-estar arquitetônico, esta adversidade, que torna Olinda conjunto harmonioso e ímpar. Torna Patrimônio da Humanidade. O que une esta mistura de estilos é a sobrevivência do traçado urbanístico do século 17. Traçado urbanístico, por sinal, que São Paulo, São Vicente e Vitória também tinham. Mas destruíram.

O que une é também a situação geográfica: feita pelo encontro tropical das colinas com o mar, integrando verde, horizonte e luz. O fato de o olindense poder a cada esquina espiar o mar e ver o horizonte do alto certamente influenciou sua vida cultural. No passado, Olinda foi um dos primeiros focos da República e do liberalismo. De pequena tipografia na rua do Amparo, logo em 1830, imprimia para o Brasil Stuart Mill, Voltaire e Bentham. Com São Paulo, criou a primeira Faculdade de Direito brasileira. Hoje, este meio ambiente feito de mar e colina, horizonte e verde, influencia um intenso movimento artístico-cultural. Nas artes plásticas, tem-se mesmo uma escola olindense. Aqui, pinta-se para fora, com força e com luz. É uma pintura afirmativa, ecológica e brasileira. Pinta-se, desenha-se e grava-se céu e mar, verde e sol. Pinta-se a pobreza, na alegria e na tristeza. Na escola olindense de arte, que vai do entalhador de talhas populares – um verdadeiro pica-pau – até a pintura internacional de José Cláudio, passando pelas aquarelas de Guita Charifke, as gravuras de Gilvan Samico, a pintura ingênua de Bajado e os murais políticos de Luciano Pinheiro, não existe temática única, nem estilo dominante. Existe é o acordo de deixar que o meio ambiente penetre e interaja com a arte. Uma arte luminosa, muitas vezes crítica e sempre afirmativa.

Olinda é tudo isto e é também cidade suja, esburacada, com praças destruídas. A maioria da população não tem recursos para preservar suas casas. Uma população marginalizada do desenvolvimento vive também neste. Patrimônio da Humanidade.  Olinda não tem um metro de esgoto. Usa sistema de fossas, o que contribui para os deslizamentos aqui e acolá de seu solo. Na solenidade de ontem, Olinda colocou, lado a lado, políticos de todas as facções: o governador Roberto Magalhães e Marcos Freire. O prefeito José Amaral do PMDB de Olinda e o prefeito Joaquim Francisco, do PDS no Recife. Colocou dom Helder Câmara, seu arcebispo, Ester Figueiredo, ministra da Educação, Marcos Vilaça, secretário da Cultura.  Daqui para frente, o desafio de todos é definir uma política de preservação que não seja privilégio apenas dos grandes monumentos, dos palácios, das igrejas. Mas que seja uma política de preservação adequada às necessidades de uma população do Terceiro Mundo. Para se preservar Olinda viva. Se não for assim, de pouco vai adiantar ser Patrimônio da Humanidade. De resto, é como dia o poeta Carlos Pena Filho:

“Olinda é só para os olhos. Não se apalpa. É só desejo. Ninguém diz: é lá que eu moro. Diz somente: é lá que eu vejo”.