Artigo publicado no Jornal do Commercio, em 18.09.2016

“Eitcha, que essa menina nasceu uma coisinha de nada, magrinha, feinha, uma titica de gente, só pele e osso, meio branca, meio preta, meio índia… De tanto ouvi-lo referir-se a mim como “essa menina”, deduzi que esse era meu nome”.

Não era. Mas foi.

“Essa Menina” é o nome de um romance, quase uma biografia. Mas não é a biografia de uma pessoa. É biografia de caráter sociológico, diria Gilberto Freyre. Com sua incrível capacidade de sincretismos. Mas uma biografia sociológica de quem? De quando?

De uma família, de uma escola, da militância politica, da diferença de classes, de uma pequena cidade, do progresso, do candeeiro à luz elétrica, tudo no e a partir do, Nordeste.

Das relações entre gerações, netos e avos, entre homens e mulheres, professores e estudantes, estudantes entre si.

Biografia política também. Sem ser politizada. “Já no meu terceiro dia de vida… três soldados invadiram nossa casa… os covardes obrigaram mamãe a se levantar da cama comigo no colo. Esvaziaram a penteadeira o camiseiro, rasgaram o colchão da cama, e na cozinha espalharam no chão a farinha, o café o e o arroz. Quebraram tudo. Só deixaram intatos os quadros da Sagrada Família e da Santa Ceia… diante dos quais se benzeram. ”

Estávamos na época de Getúlio Vargas. Alguns diriam que se trata de um romance regional, como os de José Lins do Rego, e Raquel de Queiroz. Não gosto desta classificação. Sugere uma dicotomia hierarquizada entre romance nacional e romance regional.

Este impulso de classificar tudo que vem do Nordeste como regionalismo, tem um certo ar de nacionalismo sudestizado.

É injusto o desafio por exemplo de Kleber Mendonça e tantos outros cineastas daqui. Para ser nacional, tem antes que ser internacional. Rodrigo Montenegro lembra que São Paulo classifica a reinvenção da linguagem do cinema que surge dos bares do Recife como cinema pernambucano. Não é. Alias é também. Mas sobretudo é cinema global, com os pés encharcados na experimentação e inovação local.

“Essa Menina”, de Tina Correia, é uma “autobiografia social”, tomando emprestado de José Paulo Cavalcanti o título de seu livro “Fernando Pessoa, Uma Quase-Autobiografia”.

Autobiografia, por que a autora nele ali está. Social, porque nele encontramos muitos de nós mesmos.