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Separação dos Poderes: Harmonia ou Competição? – Joaquim Falcão e Marcelo Lennertz
Artigo publicado na Revista Consulex, em 2009.
Não há modelo unívoco de separação de Poderes no mundo e muito menos no Brasil. Nossa história constitucional demonstra que o princípio da separação dos Poderes pode ser incorporado aos textos constitucionais de diferentes maneiras.
A Constituição de 1824 não falava, expressamente, em independência dos Poderes, que não eram nem mesmo três, e sim quatro: Executivo, Legislativo, Judicial e Moderador. Na Constituição de l891, sob a influência do constitucionalismo americano, adotou-se a fórmula dos três Poderes, “harmônicos e independentes entre si”. Em l934, trocou-se o “harmônicos” por “coordenados entre si”. Em l937, percebe-se um retrocesso no caminho rumo à efetiva independência dos Poderes: o Poder Executivo, representado na figura do Presidente Getulio Vargas, encontra-se excessivamente fortalecido se comparado com os outros dois. A Constituição de l946 restabelece a idéia de independência e harmonia entre os Poderes. Em l967/69, embora textualmente – e circunstancialmente – os Poderes fossem três, apenas um, na realidade, detinha o monopólio da estruturação institucional do poder estatal. Através dos atos institucionais o Poder Executivo suplantou, no regime autoritário, a Constituição como e quando quis. A Constituição foi hidra – ou pirâmide – de duas cabeças.
A conclusão, portanto, é: cada momento histórico entende o princípio da separação dos Poderes diferentemente. Trata-se de um ideal em aberto. Não é um datum. É um constructo.
Na Constituição de 1988, encontra-se disposto, no artigo 2º, que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Estão sendo?
Para que os três Poderes atuem de forma independente e harmônica, ao menos duas condições são necessárias. Em primeiro lugar, um Poder não deve ser capaz de influenciar diretamente as decisões que estejam inseridas no âmbito da competência de qualquer um dos outros dois Poderes. A autonomia decisória, desse modo, é pressuposto para a independência e a harmonia entre os Poderes.
Não basta, porém, que um Poder tenha a capacidade de decidir de forma autônoma as questões submetidas à sua apreciação. Uma atuação independente e harmônica pressupõe, também, que os demais Poderes respeitem e cumpram essas decisões, internalizando os custos (financeiros e políticos) que elas representam em sua própria esfera de atuação. Assim, o segundo requisito da independência e harmonia entre os Poderes é a repartição simétrica dos custos gerados pela atuação estatal, que, em última análise, importa na possibilidade de que um Poder veja implementadas suas próprias decisões pelos outros dois.
Contudo, modelos constitucionais são prescritivos e não descritivos, mesmo quando se pretendem imbuídos de uma racionalidade universalizante. São prescritivos do dever-ser, e não necessariamente descritivos do ser. Enquanto modelos prescritivos, são úteis para guiar a produção legislativa, a elaboração doutrinária e a formulação jurisprudencial em direção a um ideal democrático que pode ou não ser alcançado. São, no entanto, insuficientes para prever as estratégias formais e informais desenvolvidas por cada Poder para superar as dificuldades de fazer com que o poder estatal seja alocado de acordo com suas próprias preferências – ou o mais próximo possível disso.
A doutrina clássica avalia a separação de Poderes em plano estritamente jurídico-formal, isto é, direciona o foco de sua análise apenas para a descrição e a fixação intepretativa das competências decisórias formalmente estabelecidas no texto constitucional para cada Poder. Porém, essa abordagem é insuficiente para se compreender a complexidade das relações entre os Poderes do Estado.
Para se apreciar a efetiva natureza da relação entre os Poderes, há que se verificar não apenas o que está disposto na Constituição – isto é, no plano normativo –, mas também em que medida tais Poderes se orientam no desempenho de suas atividades com base nesses dispositivos constitucionais. Trata-se, portanto, de um exame da efetividade do princípio da separação dos Poderes. Entender a separação pós-88 é unir a autonomia decisória – a competência constitucional que em última instância determina o uso da coerção legítima – e a efetividade da decisão. Isto é, a capacidade da decisão se transformar em ação, em exercício do poder, da força estatal legítima. Aquela sem esta, transforma a Constituição em texto apenas nominal – e, talvez, até mesmo semântico –, diria Löewenstein. Prescrições constitucionais que se desmancham no ar.
Quando unimos autonomia decisória e distribuição simétrica de custos efetivos descobrimos que a natureza das relações entre os Poderes se transformam em verdadeiras arenas competitivas, onde se detemina quem usará, e como, a coerção legítima do Estado. Compete-se, pelo menos, em três arenas: a da soberania externa e do uso da força interna; a das políticas públicas; e a da gestão administrativa de ambas. São arenas interligadas. Ao contrario do que parece, a palavra final não é determinada a priori, como pretende o Poder Judiciário. Quando juntamos autonomia decisória e efetividade da ação verificamos que existe quase sempre competição é de resultado incerto.
Importa, pois, investigar as estratégias formais e informais pelas quais um Poder, utilizando de forma aparentemente “constitucionalizável” as competências que lhe foram formalmente atribuídas pelo constituinte de 1988, interfere no exercício das atividades de outro Poder. Impedindo-o de exercer de forma independente as funções designadas pela Constituição. Permitam apenas dois exemplos [1].
Quando o Judiciário estabelece, em decisão final, um débito do Executivo, e a aliança entre Congresso e Executivo transforma este débito – que, em princípio, é pagável de imediato – em precatórios pagáveis em até dez anos, no fundo, se está impondo ao Judiciário um custo não internalizado pelos outros dois Poderes. O resultado, nesse caso, é uma repartição assimétrica dos custos de legitimidade política decorrentes da atuação do Estado. Vale dizer, para proteger o wrong doing do Tesouro, a aliança dos dois outros Poderes retira ou adia a efetividade da decisão judicial. O custo assimétrico transforma o Poder Judiciário em Poder separado, mas ineficaz, sem força para fazer cumpirir suas decisoes finais. Em uma palavra: em um Poder dependente.
Considere-se, também, o que já foi demonstrado por Kazuo Watanabe [2], que uma das estratégias processuais da Receita Federal é a de ajuizar as ações de cobrança fiscal contra os contribuintes com o objetivo principal de evitar o decurso do prazo prescricional. São ações fiscais temerárias. As conseqüências para a separação dos Poderes e para a consolidação democrática não são triviais. Por um lado, anula-se a presrcição como uma garantia de liberdade da cidadania. Por outro, aumenta-se imensamente a quantidade de ações no Judiciário, provocando engarrafamento e dificultando o seu proprio funcionamento. Dito de outro modo: Impõem-se, ao Judiciário, custos operacionais assimétricos. Transferem-se os custos da ineficiência de um Poder para o outro.
Em suma, para se enetender o princípio da separação dos Poderes pós-88 temos que considerar pelo menos três variáveis: Primeiro, a doutrina constitucional brasileira tem que levar a sério que a nossa história constitucional não tem um modelo de separação unívoco e acumulativo – como parecem ter, por exemplo, os Estados Unidos. Segundo, a natureza das relações entre Poderes é determinada pela interação entre autonomia decisória constitucional e a verificável efetividade da implementação de custos simétricos. Do contrário, refina-se o ideal, mas perde-se o real. Terceiro, quando assim fazemos, a harmonia tende a se traduzir em competição. Que competição é esta?
[1] Ver a respeito, de forma mais detalhada: FALCÃO, Joaquim. Uma Reforma Muito Além do Judiciário. In: Interesse Nacional, ano I, n. I, abril-junho de 2008, pp. 56-64.
[2] Cf. Ministério da Justiça – Secretaria de Reforma do Judiciário. Estudo sobre Execuções Fiscais no Brasil. São Paulo, agosto de 2007.
De onde vem o poder da 13ª vara federal de Curitiba?
Artigo Publicado na Revista da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, nº 44, ano 16, fevereiro.março.abril, 2016
O Brasil tem cerca de 15 mil unidades judiciárias de 1º grau e 15 mil juízes de primeira instância. Por que a 13ª vara federal de Curitiba se tornou capaz de mudar os destinos do país? De onde vem seu poder?
O senso comum diria que vem da magnitude da ação penal e dos ilícitos que julga. É verdade. Mas não é tudo.
Propomos sete observações.
Primeiro, trata-se de nova geração de juízes, procuradores e policiais federais. Foram educados sob a constituição de 1988, do estado democrático de direito. Tem cerca de 40 anos, pouco mais.
Fizeram concurso público. Ocupam cargos por mérito. Têm sido bem remunerados. Usufruem do status social do estado de democrático de direito.
Segundo, são tecnologicamente funcionais. Maximizam o uso de banco de dados e Big Data. Extraem inteligência de números. Quanto mais jovem, melhor o juiz lida com a tecnologia da informação.
Terceiro, conseguiram fazer convergir, dentro das diferenças legais, magistrados, procuradores e policiais federais. A pauta não é “quem está invadindo a competência de outro” é “a eficiência do team work”.
A solidão do magistrado no seu livre convencimento, passa a ser apenas um momento no processo de colaboração coletiva.
Quarto, maximizaram a cooperação internacional, na área bancária e das finanças. Criada para combater o terrorismo, a cooperação teve como subproduto o combate à corrupção global.
Engana-se quem pensa que a corrupção é apenas brasileira. Não é. É global. É mal du siècle. O ex-presidente Nicolas Sarkosy reponde a processo. Liliane Bettencourt, a senhora mais rica da França, também. O Ministro do Orçamento francês, Jérôme Cahuzac, renunciou pois tinha conta não declarada na Suíça. José Sócrates ex-premier de Portugal passou 9 meses preso.
Os recentes Panama Papers envolvem as maiores autoridades russas, chinesas, empresários da Noruega e já fez renunciar o primeiro ministro da Islândia. David Cameron, na Inglaterra, até hoje tenta minimizar os danos políticos da conta que sua família tinha.
Sem falar na manipulação do mercado de câmbio pelos maiores bancos privados do mundo. E Cristina Kirchner conduzida a depor por suspeitas de corrupção.
Toda a estrutura aparentemente legal e inalcançável de offshores, de conflitos de jurisdição, de sociedades jurídicas acumulativas parece ruir diante da cooperação internacional.
Quinto, o grupo de Curitiba com a delação premiada e acordos de leniência, conseguiu um fluxo de informação que impulsiona o processo e ao mesmo tempo o expande.
É verdade que se questiona as delações, as prisões preventivas decretadas, as testemunhas conduzidas coercitivamente. Alega- se que ferem o devido processo legal e os direitos humanos.
Esta discussão na prática, porém é resolvida por recursos aos tribunais superiores, que têm confirmado as decisões de primeira instância.
O sexto comentário deste decorre. O grupo de Curitiba tem lidado com fatos muito mais do que com abstrações jurídicas. Doutrinas ficcionais.
Fatos viram informações. Informações viram notícias. Notícias mobilizam autoridades judiciais e opinião pública.
É um extrato bancário, um documento contábil, uma gravação autorizada, um vídeo inequívoco. Não é por menos que em inglês a prova judicial se chama “evidence”. Parodiando em português: é vidente.
A opção pelo fato incontroverso em vez da doutrina retórica faz a força do grupo de Curitiba e deixa os advogados de defesa em dificuldades. Não conseguem negar ou contrapor os fatos. Ou dar outro significado. Esta é grande mudança na prática do direito judicial brasileiro. Menos doutrinas e mais fatos.
A estratégia dos advogados tem sido encontrar nulidades processuais. Recursos, agravos, embargos infinitos. Ainda bem que os tribunais superiores começam a se autodefender e condenar o abuso do direito de recorrer.
A derradeira observação diz respeito a pergunta que me foi feita pelo jornal espanhol El País: “Será que o juiz Moro é imparcial? Será que ele não tem uma agenda política?”.
Respondi que sim. Que ele tem uma agenda política. Que sua agenda é o combate a corrução. Que é agenda constitucional. Por isto, ele, os procuradores e policiais federais têm sido imparciais.
Conversando e aprendendo a julgar
Artigo publicado na revista da ESPM, em 05.04.2016
No dia 23 de agosto de 2007, o Supremo Tribunal Federal decidiria se aceitava ou não a denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, contra 40 acusados da Ação Penal (AP) 470. Os prognósticos eram de que a denúncia não passaria.
No mesmo dia, O Globo publica reportagem de Alan Gripp e Francisco Leali sobre os ministros conversando na sessão, via laptops fotografados por Stuckert Filho. A conversa desqualificava e banalizava o julgamento. A denúncia seria recusada por ministros indicados por Lula.
O impacto foi fulminante. Isso é farsa ou julgamento? A reação da mídia e da opinião pública inverteu quem estava sendo julgado. Não mais réus do Mensalão. Mas a imparcialidade e autoridade do próprio Supremo.
Um juiz já disse: “Quando julgo, sei que serei julgado”. O Supremo estava agora na mira da opinião pública. Sua legitimidade e razão de ser no Estado democrático de direito era questionada. Para que existia?
Tudo mudou. A denúncia foi aceita. Dos 40, 25 foram condenados. As fotos e a reportagem evitaram a impunidade.
O ministro Ayres Britto deixara a presidência do Supremo no meio do julgamento do Mensalão aposentado aos 70 anos. Perguntado depois pelo grupo Sitroom da FGV Direito Rio sobre qual a decisão mais difícil na condução do processo, respondeu: “Colocar em pauta o julgamento. Marcar o dia para começar”. Havia pressão contrária de advogados, governo e alguns ministros.
Britto completou: “Foi também a decisão mais fácil. Depois da a Folha de S.Paulo ter publicado declaração do ministro Lewandowski de que existia o risco de o processo prescrever, eu, ou qualquer presidente, teria que colocá-lo em pauta. Estava em jogo a credibilidade e capacidade de o Supremo produzir justiça” .
Há milhares de outros exemplos. Na democracia, com liberdade de comunicação, a relação Supremo e opinião pública veio para ficar. A Constituição os colocou em diálogo inevitável. Até o silêncio ou o juridiquês são ações comunicativas e produzem reações comunicativas.
Pode ser diálogo-com, em que ambos convergem para objetivos comuns. Ou até diálogo-contra, em que ambos divergem até no objetivo comum. Mas não há como um, do outro, escapar.
A relação dialógica inclui votos e julgamentos, inclusive seu making of. E também o comportamento de ministros. Nos autos e fora deles.
Primeira necessidade
Quando o ministro Lewandowski se encontra com a presidente Dilma, em Portugal, e a mídia revela, explode uma reação comunicativa entre o Supremo e a opinião pública. E obriga o ministro presidente a se explicar.
Quando o ministro Luiz Roberto se encontra com o ministro da Justiça às vésperas do julgamento do rito de impeachment, e a mídia revela, explode igual reação comunicativa. Obriga o ministro relator a se explicar.
Reagir é legitimar ou deslegitimar. Reconhecer autoridade ou não. É de onde vem o poder ou o “despoder” do Supremo.
Os cidadãos podem, em plena liberdade de comunicação e inundação das mídias tecnológicas, conhecer, entender e reagir sobre como a Justiça está sendo feita. Como educação, saúde e segurança, Justiça é bem de primeira necessidade. Também.
Esse diálogo destruiu a crença elitista de alguns juízes de que ninguém lhes influencia. E de que eles decidem apenas com suas livres consciências.
A pergunta hoje é outra. Quem é, e como se forma, a consciência de um ministro do Supremo?
Todas as pesquisas, estudos, aqui e alhures, inclusive de neurociência e de estatística, mostram que muitos fatores influenciam a consciência, além da lei. Educação, valores, comportamento cotidiano, análise econômica das consequências, ambições pessoais, neuroses, preferências sexuais e religiosas etc. Tudo influencia a interpretação do juiz. A lei não é unívoca.
Estamos diante de um complexo de influências interligadas. Uma pode pesar mais que outras. É mix que muda caso a caso, no tempo e espaço. Na história. O poder do juiz reside em organizar esse mix e chamá-lo de consciência.
No passado, ministros davam imensa importância ao mimetismo, doutrinas estrangeiras e crença no caráter celestial da lei importada. Hoje, menos. A influência da mídia e opinião pública traz os ministros de volta aos problemas do Brasil real.
O acesso da opinião pública ao ministro, e vice-versa, decorre desse processo. Antes, só advogados, partes, políticos e outros ministros tinham acesso ao julgador. Acesso controlado. Brasília é ainda o símbolo desse controle. Agora, não mais.
Hoje, a mídia tem amplo e livre acesso ao Supremo. Penetra-lhe pelos poros. E o ministro, amplo acesso à mídia e à opinião pública também. Ninguém está desligado.
Essa é a grande novidade. No diálogo inevitável são todos contaminados pelos vírus dos fatos, dados, notícias, análises e opiniões. O livre convencimento dos juízes ficou mais rico e complexo. Mudou.
Democracia é assim mesmo.
A história da Reforma do Poder Judiciário e de sua estratégia pré-legislativa
“Em 2004, completava-se pelo menos dezesseis anos que o fantasma da reforma do Poder Judiciário espantava desembargadores, mobilizada juízes de primeira instância, pautava a mídia, entusiasmava advogados, e rondava, muitas vezes sem rumo, o Congresso Nacional”.
Leia o artigo completo clicando no link abaixo:
A história da reforma do poder judiciário e de sua estratégia pré-legislativa
Táxis versus Uber: efeito bumerangue
Artigo publicado no Blog do Noblat, em 05.11.2015
Era previsível. Sindicatos dos taxistas denunciam falta de regulamentação do Uber, o que implicaria na ilegalidade do serviço. Para eles, o aplicativo praticaria “concorrência desleal, ilegal e imoral”, como disse Natalício Bezerra Silva, presidente do Sindicato dos Taxistas Autônomos de São Paulo. E vice-versa?
Táxis precisariam ser melhor regulamentados e fiscalizados. É o que propõe novo projeto de lei do deputado Augusto Coutinho (Solidariedade/PE). Coutinho constata que a regulamentação está sendo burlada em várias capitais.
Temos taxistas “capitalistas”: os motoristas autorizatários – aqueles titulares das permissões do Poder Público para prestar o serviço de táxi – costumam ganhar dinheiro não pela atuação unipessoal regular da profissão. Auferem lucros, na verdade, através de diárias cobradas de motoristas “terceirizados” que trabalham no contraturno. Muitas vezes, o taxista titular da permissão sequer conduz o veículo.
Na ausência de melhor regulamentação e fiscalização, os motoristas terceirizados pelos titulares das concessões permanecem à margem das relações regulares de emprego. Com frequência, mal pagam a diária exigida.
O mercado ilegal de alvarás de táxi floresce em capitais como Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro, das 1952 transferências de permissões até então registradas neste ano, mais de 92% correspondem a este tipo de comércio. O valor destas transferências oscila entre 100 a 200 mil reais. Embora a permissão pública seja individual, alguns taxistas “capitalistas” chegam a acumular uma pluralidade de alvarás por meio de laranjas.
É o efeito bumerangue. É preciso melhor regulamentar e fiscalizar os táxis. O projeto de lei 2945/2015, do Deputado Augusto Coutinho, reforma a Política Nacional de Mobilidade Urbana, instituindo a necessidade de que o taxista autorizatário seja um condutor, de fato, do veículo. Também regula os vínculos de trabalho entre o taxista titular da permissão pública e os motoristas terceirizados, de forma condizente com a CLT. Limita o uso do táxi para dois motoristas suplentes além do titular, em três turnos de 8 horas.
A disputa taxistas versus Uber está longe de terminar. Mas agora o foco começa a mudar. São nossos táxis suficientemente legalizados?
A sociedade recebe bem o protagonismo do STF
O Poder Judiciário tem ganhado protagonismo em questões que poderiam ser vistas como de alçada do Legislativo. São exemplos decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF), como a descriminalização do porte de drogas e a união homoafetiva. Para o jurista Joaquim Falcão, diretor da FGV Direito Rio e professor de direito constitucional, a sociedade recebe bem essa atividade do Judiciário. Seu argumento é que, se houvesse uma usurpação de funções políticas, o “O Congresso reagiria”
Veja a entrevista completa abaixo:
Valor – entrevista – A sociedade recebe bem o protagonismo do STF
*Jornal Valor Econômico, 25.09.2015.
A hipocondria do dia a dia
Hipocondria: “[Do lat. Cient. hypochondria < lat. Tard. Hypocondria.] S. f. 1. Psiq. Afecção mental em que há depressão e preocupação obsessiva com o próprio estado de saúde: o doente, por efeito de sensações subjetivas, julga-se preso a condições mórbidas na realidade inexistentes e passa a procurar, permanentemente, tratamentos que, além de descabidos, são muitas vezes perigosos (medicações, intervenções cirúrgicas, etc.). [Sin., desus.: nosomania.] 2. Tristeza profunda; melancolia: ‘Era um acesso de hipocondria, uma invasão de tristeza negra, biliosa’ (Camilo Castelo Branco, Serões de São Miguel de Ceide, I, p. 35)”[2].
Evaristo de Moraes Filho é o maior hipocondríaco do mundo. E o de maior sucesso. Tem cem anos de idade e nunca morreu. Apesar de se anunciar a si mesmo e aos seus, quase que diariamente.
Jurista, professor de direito do trabalho, sociólogo do Brasil, capaz de nos fazer compreender e nos explicar. Foi cassado como professor na Faculdade de Direto da UFRJ, então Faculdade Nacional de Direito, por falsa denúncia de um seu colega de turma, Eremildo Vianna, de triste figura.
Este entrou para a história pela porta dos fundos. E aí ficou. Delatou aos militares as ideias e sonhos de seus colegas. Inclusive de um bravo pacífico Evaristo. Elio Gaspari criou um personagem e chama-o de Eremildo, o Idiota. Assim será conhecido. Não consta que tenha sido hipocondríaco. Mas Evaristo, seu desafeto, sim.
A tal ponto que alguns dias, metia-se num terno escuro, colocava camisa social, gravata e sapatos lustrados, deitava-se na cama, cruzava as mãos nos peitos, fechava os olhos e avisava aos seus que estava pronto para morrer. Ia morrer. Tentava mas não conseguia. Não morria. O fracasso de qualquer hipocondríaco é ficar doente.
O sucesso, no entanto, é apenas imaginar-se doente. Fazer os outros acreditarem na gravidade e profundidade de seus auto evidentes sintomas. Ficar tomando frequentemente seu pulso e sua pressão arterial, como definem os médicos da Clínica Mayo, dos Estados Unidos[3]. Cada vez mais possível devido aos ótimos e baratos novos aparelhos que se compram em qualquer farmácia.
Para o hipocondríaco, o sintoma não é o começo da eventual doença. É o início do fim inevitável. Tudo que parece, já é. O sofrimento psicológico não é uma impostura. A doença é imaginada, mas a dor é real.
Termômetros, estetoscópios, gemidos, taquicardias, remédios urgentes, só encontráveis em farmácias de difícil acesso, com o tempo acumulam-se na cabeceira da cama do hipocondríaco. Espiam com severidade. Receitar é preciso, toma-los não. Não fazem efeito mesmo. Não se cura imaginação. Mas se gasta fortuna com prazos de validade vencidos.
O importante é ter sintomas não verificáveis e não mensuráveis, suspeitosos, indicadores de possibilidades, muito mais do que de certezas. O que não é difícil. Devido à tecnologia se desenvolveu tão rapidamente, os exames mostram mais do que os médicos podem ver, interpretar e entender. PET scan anual é sempre o desejo secreto. Mostram o passado, o presente e futuro do corpo. Muita vez antes do tempo.
Nesta profusão de novas tecnologias médicas, surge nova especialização: o médico intérprete de exames. O médico da urgência lhe devolve ao médico clínico, que lhe manda para o médico especialista, que lhe manda para o médico que faz o exame, que lhe manda para o médico interpretador do exame. Literal cadeia sem fim. Terra fértil a dúvidas e conflitos intermináveis. A probabilidade de aparecer alguma doença oculta é imensa. Cinco médicos para cada sintoma.
***
O objetivo principal de um hipocondríaco é colocar uma dúvida razoável, plausível, na cabeça do médico. Ou dos médicos. Faze-los desconfiar de si mesmos, e acabarem cedendo. Examinando e receitando. Acolhendo.
Porque os médicos acabam cedendo aos hipocondríacos, perguntamos. Será possível que eles não veem, com toda sua ciência, anos de profissão, que doença sentida é quase ilusão à toa?
Eis aí a fortaleza do hipocondríaco: o medo dos médicos. O hipocondríaco de hoje é o doente de amanhã. Todos sabem que um dia o hipocondríaco também vai ficar doente. Pode até de fato morrer. Os sintomas podem ser reais. Não se pode facilitar. Correrá risco. Todos os procedimentos têm que ser realizados, mesmo inundados por incredibilidades. O médico tem pouca saída.
Não há maior descrédito para um médico que não ter acreditado no hipocondríaco. E que ele morreu em suas mãos. Levou uma bola pelas costas, como receia o importante médico e futebolista. Morreu de incredibilidade médica.
Não por menos, um hipocondríaco norte-americano pediu que colocassem na sua lápide a seguinte frase: “Eu bem que avisei!”.
Alguns médicos, no entanto, são mais imunes a estas estratégias. Conheci um hipocondríaco que começou com seus sintomas justamente na quinta à noite. Pioraram na sexta. No sábado ficaram insuportáveis. Naquela época o médico ia em casa. No sábado à tarde foi indispensável chamá-lo. O hipocondríaco morria a olhos vistos. Neste caso, já agonizava.
Chamaram o médico às seis da tarde. Entre a chamada e a chegada, demorou uma hora, o suficiente para o hipocondríaco se sentir muito melhor, quase curado. Já conseguia respirar sem ofegar. As dores diminuíram. Os sintomas também.
Começou a sentir vergonha imensa, sentimento de culpa, pela crueldade que fizera com o sábado do médico, quando o porteiro avisou. O médico chegara. E irrompeu quarto a dentro.
Doutor, doutor, quase sem voz. Me desculpe, me desculpe, já estou melhor. Acho que foi um ataque de hipocondria. Já estou melhor. Aliás, não sinto mais nada. Foi se levantando da cama quase pronto.
Não senhor. Não senhor. Vociferou o médico. Deite-se. Vou lhe examinar por inteiro. Vou fazer todos os testes. Responda a minhas perguntas. Estire a língua.
Mas doutor …
– Deite-se. Puxou o estetoscópio, como se fosse um punhal e disse: respire fundo. E alertou-se a si mesmo: Hipocondríaco também morre.
Este é o temor dos médicos: a possibilidade de realmente o hipocondríaco vir a morrer. O hipocondríaco joga com os inevitáveis limites da ciência médica e a inevitável impotência profissional do médico que, por definição, sempre chega. Um dia o paciente hipocondríaco, em vão, vai morrer.
Hipocondríaco que se preze só fica doente sábado ou domingo. Dia de consultórios fechados, médicos inalcançáveis, almoçando fora, passando o fim de semana em Búzios, viajando para congressos, seminários cursos de reciclagem, onde o celular não pega. Obstáculos absolutamente indispensáveis para a cura do hipocondríaco.
No entanto, cuidados excepcionais alguns hipocondríacos têm de ter: não deixarem ser levados à emergência do hospital no sábado ou no domingo. Nestes dias há vagas nos hospitais. Inclusive na UTI. Dificilmente conseguirá sair de lá. Mesmo sabendo que o médico, desconfia que não há nada de grave. Hospitalização raramente cura hipocondria. O hipocondríaco espera ser curado sem exageros.
Aliás, o conceito do que é grave em medicina é muito complexo.
Vinicius de Moraes procurou com urgência seu médico que, fora do consultório, foi encontrado em meio de uma conferência médica, da qual foi arrancado.
“O que houve para você me tirar da conferência, Vinicius?”
“Aparentemente, nada grave, mas, veja bem doutor. Dormi bem. Acordei com muita disposição. Com muita fome. Não sinto dor nenhuma. Tenho vontade de correr. Isto não pode ser normal. Acho que algo de muito grave vai acontecer comigo!”.
O hipocondríaco só se deve deixar levar à emergência hospitalar nas terças, e quartas, quando os hospitais estão lotados. Não tem lugar. Nem na emergência. Os médicos, então, receitam e lhe mandam logo para a casa. Hipocondríaco não precisa mesmo de hospital…
Quando um paciente chega ao consultório com mais de três ou quatro sintomas ao mesmo tempo, e que mal consegue descrever com precisão um ou outro, o médico já sabe que é tudo imaginação. À sua frente está um hipocondríaco contumaz.
Se queixar de seis sintomas ao mesmo tempo, então, é quase romance, ou minissérie de televisão. O diagnóstico é imediato: surto de múltipla imaginação grau III.
Por tudo isto, para o hipocondríaco, a maior qualidade do médico não é expertise, conhecimento, prestígio, preço da consulta, universidade que cursou, hospital onde trabalha, ou taxa de sucesso de curas, afirmou a maioria dos entrevistados. A maior qualidade do médico é a disponibilidade. Estar ao alcance da mão. Ou melhor, dos gritos e sussurros.
Nas entrevistas que realizamos, se o médico quer conquistar um paciente hipocondríaco, (desperdiçam tempo, mas pagam bem), nada mais fácil. Dê o telefone do consultório, de sua casa, seu e-mail, seu número de celular, o telefone da secretária, do médico auxiliar, se possível mais de um, da emergência do hospital preferido, e, sobretudo, o telefone particular da esposa.
Aí, o cliente nunca mais lhe abandona. Sobretudo se sua esposa souber ouvir e transmitir as queixas. Tomar notas. E aumentar um pouco a gravidade relatada. A solidariedade da mulher do médico é decisiva. Ela mesma deve saber receitar Novalgina, Buscopan Composto, ou Rivotril pelo telefone ou e-mail.
E em casos extremos, o milagroso Motilium. Cura síndromes dispépticas, espinhela caída ou traz o amor de volta em até três dias, como diria Luís Roberto Barroso, jurista não hipocondríaco. Ainda por cima é compatível com neurolépticos. Mas, atenção! Pode provocar leves diarreias.
Se o médico não tiver casa de fim de semana, melhor. Um dos melhores médicos, relatou-me um dos entrevistados, não tem casa de fim de semana no Rio, nem na serra, nem na praia. Mas, em compensação, tem apartamento e passa longas temporadas em Londres. O que pode ser uma vantagem, se coincidir sua viagem e sintomas em Londres, com a estadia anual dele por lá. Neste caso, Londres est une fête!
A origem da hipocondria pode, inclusive, ser o próprio médico. É preciso estar atento. Um parente de um dos entrevistados, paciente normal, sofria de dores abdominais cíclicas. Foi diagnosticado como “stress crônico”. Receitaram Rivotril sublingual, férias nos Alpes suíços, e promoção no trabalho. Quase morreu dias depois na mesa de operação. Estava desenvolvendo peritonite aguda. Escapou, mas ficou hipocondríaco para sempre. Tem hoje verdadeiro pavor a diagnósticos. Sua frio.
O hipocondríaco necessita apenas de uma explicação convincente e fundamentada. Nada o irrita mais do que quando o médico usa de “topoi”, tipo de diagnóstico que apazigua médicos, mas pouco explicam. “Você tem um vírus inespecífico”. Ou, “Você tem colo irritado”. Ou ainda, “Trata-se de mialgia”. Diagnósticos vagos. “É stress”. Este é o pior de todos, e o mais frequente, afirmaram os entrevistados.
***
Hipocondria, no entanto, pode ser curada pelo próprio paciente. De muitas maneiras. Um hipocondríaco enfartava a cada duas semanas. Dava trabalho imenso. Família, colegas de trabalho, todos tinham que levá-lo de urgência para a clínica ou posto de saúde da empresa para tirar um eletro, que nunca dava nada. Nem mesmo o teste de esteira com cintilografia.
Resolveu então enfrentar a situação.
Toda vez que se anunciavam as dores do pré-enfarto corria para uma academia de ginástica. Subia na esteira. Corria cinco quilômetros em meia hora. Ou alternadamente, jogava-se na piscina, nadava mil metros de uma só vez. Se não morresse ou se afogasse, o diagnóstico era óbvio: transitória hipocondria cardíaca grau II.
Não morreu até hoje. Os pré-enfartes diminuíram. Nem colocou ponte de safena, como a imensa maioria de seus colegas, e como inclusive recomendavam alguns de seus próprios médicos.
Mas hipocondríaco também leva susto. Outro, tendo história familiar de complicações cardíacas, resolveu fazer, por precaução, cineangiocoronariografia preventiva. Mas, a anestesia, que em geral é leve, não foi suficiente.
A certa altura, ainda deitado , ouviu o médico dizer para a enfermeira, displicentemente, como se tivesse chupando um picolé de chocolate , diria Nelson Rodrigues, olhando o resultado para a telinha do aparelho: “Ih, o gato subiu no telhado”. Foi o suficiente.
Levantou-se, vestiu-se, arregimentou os parentes, saiu correndo da clínica em Botafogo e só parou dois dias depois em Cleveland, Ohio. Não tinha nada. Nem sabe, até hoje, se o gato era mesmo real. O médico podia tê-lo visto lá fora pela janela da sala dos procedimentos. Preferiu não averiguar.
Antes de optar por Cleveland, pensou até em ir para São Paulo. Mas quando você vai para o Sírio-Libanês, os paulistas dizem que o Albert Einstein é melhor. E vice-versa. Um inferno. Impossível decidir. Paulista compete até na doença. Agrava a já difícil confusão imaginativa do paciente.
Existe hipocondria preventiva. O hipocondríaco estava num restaurante, quando lhe apontaram: “Aquele é o melhor cirurgião da cidade”. Não teve dúvidas. Levantou-se, foi à mesa, e se apresentou.
“Doutor, soube que o senhor é o melhor cirurgião de todos, quero logo me apresentar. Meu nome é Alberto. Sei que vou precisar do senhor, mas não sei quando nem por que. Mas, ficamos logo apresentados, temos amigos comuns, tenho três planos de saúde, todos de luxo doutor, pagos religiosamente em dia etc…”
O cirurgião ficou boquiaberto. Comia um sushi. Nunca tinha tido um pré-operado na vida. Não deu outra. Ano e meio depois, encontraram-se na maca do hospital. O hipocondríaco deitado, feliz da vida. Estava nas mãos certas.
Outro relatou que tem cinco aparelhos de tirar pressão escondidos em todos os cantos da casa e do escritório de trabalho. Além, lógico, de ter um na mochila da academia de ginástica e outro no porta luvas do automóvel.
Existe também a hipocondria socialmente genética, repassada por estruturas moleculares. Não ainda constatada em DNAs, e modernos exames. Os filhos de pais hipocondríacos, afirmam alguns estudos, teriam mais chances de se tornarem hipocondríacos também. Afinal, querendo ou não, os pais transmitem aos filhos o que tem de bom, e o que tem de mau também.
Conheço um deles que diz que se preparou, e a família toda, para morrer de enfarte. Escapou. Não morreu. Morreu de câncer. Mas seu filho herdou, então, uma dupla probabilidade: a cardiológica imaginada e a oncológica real. Ficou hipocondríaco, mas vive bem até hoje.
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O hipocondríaco quer divulgação solidária. Avisar a todos. Dizer que faltou ao compromisso de trabalho porque está doente. Se possível, a secretária pode dar detalhes, evasivos, como se ela firmemente acreditasse na doença dele.
Hipocondríaco sério não se automedica. Apenas automedica os demais colegas. A si mesmo, raramente. Só o médico, a esposa ou a secretária de confiança do médico lhe receitam.
Não se sabe ao certo as causas da hipocondria. Ela é basicamente uma situação individual, que se concretiza numa relação comunicativa. Hipócrates (460 a 377 a.C) já a descrevia. São várias as causas. Muitos afirmam ter um fundo psicológico. Seria uma patologia do espírito.
O hipocondríaco pensa o tempo todo em seu corpo. Conhece-o melhor do que ninguém. Viaja-se em si mesmo todo o tempo. Uma permanente busca ostensiva por sintomas. Seria assim um tipo de autoeurotismo, diriam alguns freudianos. Talvez tenham razão.
Por isto mesmo, um hipocondríaco aceitou o conselho de seu médico clínico e foi procurar um terapeuta, um psicólogo, um psiquiatra. Não, pior. Foi direto, non-stop, para um psicanalista. Risco total. Psicanálise deitado. Gostou muito das sessões, por causa do tema do tratamento: ele mesmo. Não ficou bom, mas há vinte e um anos faz análise. É feliz.
Lembra a frase de Guimarães Rosa: de tão egocêntrico, ele se colecionava. Que melhor lugar existe para se colecionar, se não num confortável consultório de psicanalista, silencioso, com ar condicionado, luz baixa, deitado em acolhedor sofá, diante de uma autoridade, justificando a seu favor, tudo o que você fez. Tudo o que ainda não fez. Mas um dia fará.
Em Harvard, o grande sociólogo Robert Putnam, que inventou o conceito de social capital, fez a seguinte afirmação: “Um doente que fala de sua doença para pelo menos sete pessoas diferentes, tem cerca de 30% mais de chance de ficar bom, de encontrar algum tipo de cura. Isto está comprovado por pesquisas!”.
Tem razão Putnam. A disseminação e pluralização da informação aumentam as chances de cura, confirmações dos diagnósticos e possibilidades de tratamento. Diversifica-se o risco da doença, do mesmo modo que se diminui o risco financeiro de uma carteira de investimento diversificando os investimentos.
Ou seja, o hábito do hipocondríaco ir a vários médicos para doença nenhuma não é apenas imaginação ou autoerotismo. Hipocondria seria também uma estratégia estatística e preventiva de cuidar da própria saúde. O hipocondríaco confia na estatística “avant la lettre”.
Hipocondria educa. Um muito importante oncologista, membro da Academia Brasileira de Medicina diz que diante de um real diagnostico de câncer, o hipocondríaco é mais forte ao receber a notícia do que um paciente normal. Lógico, ele já treinou muito para este momento.
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Não só a qualidade do médico, mas a quantidade dos médicos pode resolver também. Um dia, a secretária de Jacqueline Kennedy deixou escapar que estava meio adoentada. Na mesma hora, Jacqueline disse: “Você precisa ver meu médico”.
A secretária hesitou e agradeceu. Jacqueline insistiu com um argumento definitivo: “Tenho médicos para todas as partes de seu corpo”. Tinha. Ao que parece, a secretária ficou curada.
Um dos maiores hipocondríacos de que se tem notícias foi Marcel Proust. Queixava-se que a mãe e a avó só lhes davam atenção quando doente. Tinha medo de quase tudo. Tinha asma. Medo até de vento, ou seja, de corrente de ar. Proust protegia-se do ar e de seu pânico ficando trancado em casa, no seu quarto, Celeste a lhe servir. Deitado. Mas, como não tinha televisão, nem internet, aproveitou sua imaginação e escreveu “Em busca do tempo perdido”. Pas mal du tout!
A conclusão das entrevistas foi a de que se você é, então, um hipocondríaco, deve se assumir. Tal qual Vinicius de Moraes, Toquinho, Andy Warhol, Howard Hughes, Woody Allen, e tantos outros.
Sem esquecer que no Brasil temos ainda o senador José Serra, um hipocondríaco de padrão mundial, assim como o músico João Gilberto e o banqueiro José Luiz de Magalhães Lins. Estes dois últimos, como Proust, se trancaram. Raramente saem de casa. Trio brasileiro a orgulhar qualquer nação.
O importante, concluíram, é a necessidade de ter sempre uma atitude hipocondriacamente realista. Saiba logo que quanto menos você precisa do médico, mais útil ele será. Até o dia em que você precisar desesperadamente dele, e ele nada mais poderá fazer. Aí, como dizem os franceses: “il faut faire les adieux ”.
Notas
Trata-se de um reflexivo resumo livre, com base em uma série de entrevistas com pacientes que se reconheceram hipocondríacos.
[2] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª ed., Curitiba: Positivo, 2004, p. 1046.
[3] Ver http://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/hypochondria/basics/definition/con-20028314. Acesso em 01.06.2015.
*artigo publicado na Revista Insight Inteligência, nº 69, abril/maio/junho de 2015. pg. 88-94