Publicado no jornal Valor Econômico no dia 21 de julho de 2022 (Acesse aqui)

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), professor de direito constitucional e coordenador do Núcleo Democracia do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, o jurista Joaquim Falcão afirma que o presidente Jair Bolsonaro, ao atacar a Justiça Eleitoral perante um grupo de embaixadores, “desmoralizou a diplomacia” e acentuou ainda mais o isolamento do Brasil no cenário mundial.

Ele vê três possíveis crimes cometidos pelo mandatário durante o seu discurso: um de responsabilidade, outro do Código Penal e um terceiro na área eleitoral. Mas é pouco otimista sobre o avanço dessas investigações.

“Bolsonaro tem dois zagueiros”, diz ele, referindo-se ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que está em férias, e ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que ainda não se pronunciou a respeito.

Falcão afirma que “estamos em pleno desfazer do Estado Democrático de Direito” e que o Supremo Tribunal Federal (STF) demorou a agir, já que as falas atentatórias à Constituição são um costume do presidente desde o primeiro dia de mandato. Ele elogiou a firmeza do ministro Alexandre de Moraes em colocar freio aos arroubos do presidente. Mas, na avaliação geral, criticou a postura da Corte: “Prefiro um STF calado do que um STF que emite notas oficiais.”

O jurista também disse que os benefícios sociais previstos na PEC das bondades são uma estratégia eleitoreira que pode não prosperar. “O presidente pagou antecipado e está com medo de não receber o que comprou”. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: O presidente voltou a atacar sem provas o sistema eleitoral, durante reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada. Como o senhor avalia o episódio?

Joaquim Falcão: Estamos assistindo a uma internacionalização da campanha de Bolsonaro pelos mesmos métodos de sempre: ameaçar, anunciar golpe, estimular a violência e ir contra a Constituição. O resultado é o silêncio constrangido de todos os embaixadores, tanto os ativos quanto os aposentados, com a solidariedade dos embaixadores estrangeiros. Aquilo foi a desmoralização da diplomacia. Em pleno exercício da democracia, o presidente subir à tribuna e diminuir a democracia do seu país, é uma situação inusitada. Mas a reação é um silêncio estridente, que quase dá para ouvir.

Valor: As falas do presidente colocam em risco a continuidade da democracia no próximo ano?

Falcão: Golpe não se anuncia. Golpe se dá ou não se dá. Bolsonaro não vai dar golpe. Se houver, o golpe será dos militares. As Forças Armadas estão sendo cooptadas por todos os meios, seja por salários, por recursos, por poder, por cargos.

Valor: Mas considerando que as Forças Armadas parecem ter comprado o discurso do governo, Bolsonaro poderia eventualmente ser responsabilizado?

Falcão: Se o presidente incitar o golpe, isso é ilícito.

Valor: Houve crime na fala de Bolsonaro aos embaixadores?

Falcão: Do ponto de vista técnico, Bolsonaro, com esse ato, pode ter incorrido em pelo menos três. Um é crime de responsabilidade, sujeito a impeachment. Outro é crime comum, do Código Penal, cuja consequência é a prisão, conforme pediram ao

Supremo os parlamentares de oposição. E o terceiro é um ilícito eleitoral, que pode acabar em cassação. Essas são as três vias de acesso a uma ação jurídica mais contundente. O problema é que, quaisquer que sejam os caminhos para responsabilizar o presidente, o fato é que Bolsonaro tem dois zagueiros: o Aras e o Lira.

Valor: Zagueiros porque eles impedem o avanço das investigações?

Falcão: Aras e Lira estão empenhados nessa defesa, porque são os donos dos prazos e dos processos e têm o privilégio de dizer as regras do jogo. Lira não vai abrir nenhum dos pedidos de impeachment contra Bolsonaro e Aras, em relação à notícia-crime do STF, pode simplesmente demorar para analisar, resistindo à pressão interna dos subprocuradores, que é intensa. Durante a ditadura, a função do PGR era exatamente a mesma, a de fazer com que não chegasse ao Supremo nada daquilo que o regime militar considerava inconveniente.

Valor: O senhor considera que esse é o pior momento da democracia desde a Constituição de 1988?

Falcão: Estamos em um sistema que não tem mais previsibilidade legal. Estamos em pleno desfazer do Estado Democrático de Direito. Estamos na informalidade total, e na mão desses zagueiros. A questão deixa de ser jurídica e técnica, porque, a 70 dias das eleições, não há vontade política para endereçar essas ações. A gente está em um país sem regras, porque há uma aparência de legalidade, mas é ilegítima, porque não é democrática. Bolsonaro teve a discricionariedade para indicar pessoas com as suas mesmas ideias.

Valor: O senhor vê paralelo entre o período pré-golpe militar em 1964 e o atual momento do Brasil?

Falcão: Em 1964 se considerava que havia um inimigo: em plena Guerra Fria, o fantasma do comunismo unia empresários, militares, classe média, igreja católica. Agora não há inimigo senão o próprio presidente e a sua vontade de continuar no poder.

Valor: E como explicar, em meio à crise econômica atual, que parte desses setores continue apoiando o bolsonarismo?

Falcão: O Brasil está prestes a se tornar o maior provedor de gêneros alimentícios do mundo. Comida vai ser uma das maiores demandas do mundo nos próximos anos. O agronegócio quer governo estável, em que possa continuar a trabalhar. Então é um engano, acredito, achar que o empresariado ficaria satisfeito com um clima de instabilidade, sem instituições que possam defendê-lo. Se Bolsonaro faz isso com as instituições, vai fazer também com os bancos, por exemplo. A estabilidade é uma preciosidade para as instituições econômicas, e é isso que está em jogo hoje.

Valor: Além dos discursos antidemocráticos do governo, houve dois impeachments nos últimos 30 anos. É possível considerar que a democracia brasileira é estável?

Falcão: O Brasil tem um problema estrutural grave, que não foi resolvido e nem será resolvido apenas com política macroeconômica, que é a questão da pobreza. Desde a Constituição de 1988, o número de eleitores aumentou, o poder do voto se democratizou. E ao mesmo tempo em que houve essa descentralização do voto, houve centralização das riquezas. Enquanto isso não for resolvido, vai ser difícil ter uma democracia estável.

Valor: Os benefícios sociais previstos na PEC das Bondades, a menos de três meses das eleições, podem vir a ser considerados compra de voto por Bolsonaro, que pretende concorrer à reeleição?

Falcão: Outro dia, uma beneficiária do Auxílio Brasil disse que, mesmo com o aumento do pagamento, vai trair o presidente em outubro. Não existe o pressuposto de que Bolsonaro quer comprar e o eleitor quer vender, principalmente porque o voto é secreto. O presidente pagou antecipado e teme não receber o que comprou.

Valor: Qual o impacto dos discursos de ódio em um governo?

Falcão: É um traço da personalidade dele. Acontece que a base eleitoral de Bolsonaro é muito agressiva e precisa ser alimentada por essa agressividade. É uma base que tem muitas frustrações não equacionadas – e quando isso ocorre, há violência. O presidente está atendendo a demandas reais da sua base.

Valor: Parte desses discursos violentos estão sendo apurados no STF. O Judiciário tem dado a resposta satisfatória a esses episódios?

Falcão: No evento com os embaixadores, não houve nada de novo em relação à agressividade verbal. No primeiro mês de mandato, Bolsonaro foi para a frente dos quartéis e disse: “A Constituição sou eu”. Nesse momento, atitudes já deveriam ter sido tomadas. Mas é fato que o presidente não pensava encontrar no STF alguém com temperamento e disposições tão fortes quanto o ministro Alexandre de Moraes, que tem feito o possível para colocar freio nessas atitudes. O problema é que os processos não acabam nunca, as jurisprudências são constantemente mudadas, e fica difícil para o STF tomar uma decisão imediata e definitiva quando é necessário, o que é uma vantagem de Bolsonaro, que utiliza a rapidez como estratégia política.

Valor: O senhor falou do ministro Alexandre, mas qual a sua visão geral sobre o STF de hoje?

Falcão: Me preocupa muito esse estilo negociante do STF, do convívio entre ministros e o presidente, de aparentes parcerias. Ministro não deve falar. O presidente do STF não deve falar, deve agir. O Supremo tem que ser raro, não pode ser protagonista. E, a meu ver, o tribunal está dividido, o que é ruim para o país. Precisamos de um STF forte, unido, claro, com jurisprudência firme e sem intenção midiática. Eu prefiro um STF calado do que um STF com notas oficiais.