Publicado na Revista Conjuntura Econômica, do FGV/IBRE, em janeiro de 2022.

 

Quando perguntado sobre as preocupações em torno da economia e das perspectivas políticas para 2022, tratadas exaustivamente na mídia a partir da análise de pesquisas e projeções, Joaquim Falcão sai da superfície da conjuntura e, de seu mergulho, retorna com temas basilares que reconfiguram a ordem do debate. Nesta entrevista para a Conjuntura Econômica, o membro da Academia Brasileira de Letras defende que o sistema financeiro precisa de uma cirurgia institucional “para aprender com as consequências” que ajuda a provocar sobre o processo de produção de bem-estar dos brasileiros. Alerta sobre a dificuldade do Supremo de dar conta dos processos a decidir, fazendo bypasses que ampliam a insegurança, inclusive econômica. E afirma que a ameaça à democracia não é eleitoral, mas sim a da pobreza.“O plebiscito que o país tende a fazer (em 2022) – assim espero – é entre a experiência da pobreza e o talão de cheques do governo”, diz.

Conjuntura Econômica — Fechamos 2021 com mais inflação, mais juros, e a economia andando de lado. Como avalia as expectativas para 2022?

Revi recentemente as estimativas do Boletim Focus de 24 de dezembro de 2020. Apontavam inflação de 3,34% no final de 2021, com a Selic em 3,13%, câmbio em R$ 5 e PIB cres- cendo 3,49%. Todas erradas. Mesmo quando indicou crescimento do PIB. Este seria mais um exercício de pre- visões frustradas não fosse o fato de o Banco Central tomar esse conjunto de expectativas do chamado merca- do como base para as expectativas de toda a política financeira do Brasil.

Tomam-se, data venia, como ex- pectativas nacionais, anseios que são de apenas um setor da economia: o mercado. E não de toda a linha de produção e circulação da moeda. Essa escolha estatística equivocada pode sugerir as graves dificuldades não só da política financeira oficial, mas do próprio ecossistema financei- ro. E da democracia. Perde-se credi- bilidade e legitimidade institucional. Como me disse um banqueiro sobre as previsões: “Isso é ridículo”. E para o final de 2022 preveem cerca de 5% de inflação. Em ano eleitoral?

Conjuntura Econômica — Por que então tanto erro?

Porque a concepção do sistema fi- nanceiro e seus processos – inclusi- ve do Boletim Focus, resoluções do Banco Central e parte dos debates acadêmicos – decorre do que deno- mino dogmática financeira. Há anos está equivocada. Ela não se retroali- menta dos fatos que provoca. Ela se dogmatiza a si própria. Guimarães Rosa diria: “De tão egocêntrica, ela se coleciona”. Ou os economistas, fi- nancistas, especialistas mudam essa concepção macroeconômica, ou vão aumentar a crise.

Desde 1988, a crise da democra- cia resulta do conflito entre a con- centração do poder da renda versus a desconcentração do poder do voto. Este é um dos produtos visíveis da atual política macroeconômica.

Parecem existir duas macroecono- mias: a da nuvem conceitual, na lin- guagem tecnológica. E a outra: a de suas consequências quando aplicadas. Quando as autoridades tentam con- cretizar a nuvem, não produzem bons tempos. No máximo, sol a pino em cerca de 3% ou 4% dos brasileiros.

Receio que o debate econômico seja demasiadamente controlado por previsões. Conjunturas. Sobre o cur- to prazo. Mas quem está com febre é a estrutura do sistema financeiro. Precisa de cirurgia institucional.

As concepções, doutrinas ou te- orias, quaisquer que sejam, jurídica ou econômica, não podem ser fe- chadas. Ortodoxas, dogmáticas, re- petidoras de erros. Como diz Silvio Meira (cientista, fundador do Porto Digital, em Pernambuco), qualquer teoria é uma organização que deve- ria ter uma característica fundamen- tal: aprender com as consequências que ajuda a provocar. O desprezo pelas consequências tem corroído o processo macroeconômico de pro- dução do bem-estar equilibrado de todos os brasileiros.

Conjuntura Econômica — Considera que um Banco Central independente, como determina a nova lei, com mandatos presidenciais fixos, pode corrigir esses erros?

A independência do BC é uma ilusão geracional. Da década de 1960. Des- conheço nos últimos anos qualquer episódio público de interferência do presidente da República. Todos fo- ram respeitosos. Quem mais mudou a liderança do BC foi o presidente Fernando Henrique Cardoso; quem menos mudou foram os presidentes Lula e Dilma Rousseff e Jair Bolso- naro. Não há notícias na mídia so- bre interferências desses governos no BC. Os presidentes foram e são pes- soas corretas: Henrique Meirelles, Alexandre Tombini, Ilan Goldfajn, Roberto Campos.

A nova lei do BC foi a vitória do passado contra um problema que não existia. O livro Unelected power, do economista inglês Paul Tucker, mos- tra que as democracias ocidentais estão em geral sob o comando de duas instituições: o Banco Central e o Supremo. O que as caracteriza é que seus membros não são eleitos. Não há eficaz controle institucional, político ou social. Mesmo diante do erro.

Para Tucker, a independência legal de um BC, sozinha, não corrige os er- ros da atual estrutura. E ele fala sobre a Inglaterra. É preciso uma reinstitu- cionalização mais ampla do sistema. Requer, por exemplo, diz Tucker, a proibição de portas giratórias (revol- ving doors) para que o BC não seja capturado pelo mercado financeiro. Esta questão da independência do BC é do regime militar. Com Dênio No- gueira (primeiro presidente do BC, de 1965 a 1967) e Costa e Silva. Ques- tão velha, medo idoso e ultrapassado. Sobretudo diante dos novos proble- mas: a digitalização galopante.

Conjuntura Econômica — Se fosse fixada uma nova formatação institucional do Banco Central, qual agenda o senhor projetaria para esse novo arranjo?

A principal agenda dos BCs em 2020-30 deveria ser a questão da digitalização, dos bitcoins, das crip- tomoedas e do impacto dos algorit- mos não somente sobre decisões de Banco Central, dos bancos, das fin- techs, das empresas, mas também do próprio Supremo. Como evitar uma batida de frente, uma ruptura entre os diversos tipos de moeda, ativos físicos e os criptoativos? Que tipo de regulação sincrônica precisamos? Como enfrentar a eventual lavagem de dinheiro que pode e ocorre nesse setor digitalizado? Qual o poder de polícia do Estado, se é para ter al- gum, sobre este bravo mundo novo “figital”, como diz Silvio Meira?

Qual é a autonomia dos múltiplos criptoativos diante da lei? Teremos uma legislação de conflito? De uso da força legal contra algoritmos? O presidente Roberto Campos já ace- nou nessa direção. Nosso setor ban- cário sempre foi pioneiro na inova- ção tecnológica. Trata-se de avançar. Esta é a agenda da geração atual. Es- tarão as lideranças econômicas, e até jurídicas, preparadas para ela?

Considera que medidas como a in- trodução do objetivo de fomentar o pleno emprego dentro das metas secundárias do Banco Central, pre- visto na lei de 2021 que estabelece a autonomia do BC, colaboram para aproximar essas duas realidades macroeconômicas que mencionou?

Quanto à questão do pleno empre- go, outros bancos centrais, como o dos Estados Unidos, já têm este mandato. Seria ótimo. Tomara que dê certo. Mas atenção. Inexiste um consenso sobre os dados de desem- prego no Brasil. Existe um menu de tipos de desempregos, que cada um escolhe conforme seu interesse po- lítico. Ocupados, desocupados, su- bocupados, desalentados, o imenso setor de informais, os trabalhadores por conta própria, empregados no setor privado sem carteira assinada, desiludidos, invisíveis, procurando emprego, nem-nem. Uma Babel.

Para o BC ser eficaz, a primeira ta- refa seria uma reorganização concei- tual dos dados. Não somente na tipo- logia, mas desde logo na coleta, para que todos pudessem falar a mesma lín- gua. O que é difícil quando o governo é contra o censo. Não quer enfrentar os fantasmas que cria. Esconde-se nas nuvens de sua própria cegueira.

Gilberto Freyre uma vez disse que os juristas precisavam fazer psicanálise. Algumas autoridades econômi- cas também. Psicanálise conceitual, acrescento. Mas nem todos.

O FGV IBRE, por exemplo, pas- sou o ano inteiro de 2021 indicando que o desemprego era maior do que as estatísticas oficiais apontavam (entre outros fatores, pelo aumento da população fora da força de traba- lho). Estava e tem estado certo.

Este ano o Supremo esteve presen- te em vários temas-chave para a sociedade brasileira, da anulação das condenações do ex-presidente Lula, tornando-o novamente elegível, aos temas envolvendo a vacina- ção. Qual balanço faz da atuação do STF em 2021?

O Supremo teve boa performance na defesa e expansão dos direitos fundamentais, direitos humanos, garantia da liberdade de imprensa, as- segurando eleições com paridade de armas, como diz Ayres Britto. Além do combate às fake news. A grande dificuldade é a fragmentação e poli- tização do Supremo, inclusive, como acentua Wallace Corbo (professor de Direito Constitucional da FGV Direito Rio), no Estadão, com a for- mação de uma emergente ala bolso- narista dentro do Supremo. O sonho máximo do antidemocrata.

Outra dificuldade é o processo interno de decisão. Sem controle suficiente. É grave. O Supremo não dá conta dos processos a decidir. Pior. Começa a usar a tecnologia para fazer bypasses, como o Plená- rio Virtual. Não permite um devido processo legal. Produz um indevido processo legal.

No Supremo, adiar é muitas ve- zes não uma necessidade processual, mas um interesse politizado. A poli- tização judicial se esconde hoje de- baixo do processualismo patológico. O caso mais recente explícito é o do ministro Nunes Marques, que depois de o placar estar 8×0, pede destaque no processo sobre o passaporte das vacinas. Adiou a decisão que contra- ria Bolsonaro.

O Supremo não enfrentou o mé- rito para absolver ou condenar o ex- presidente Lula. Mandou tudo co- meçar outra vez. Não sabemos, até hoje, em definitivo, se houve ou não algum comportamento ilícito. Nem decidiu se provas obtidas por gra- vações obscuras são lícitas ou não. Silenciou. Adiou.

O notável antropólogo Luís da Câmara Cascudo, nordestino, dizia que o Brasil é o país das soluções… adiadas. O Supremo às vezes se pa- rece com esse Brasil.

Estive vendo minha última entre- vista para a Conjuntura Econômica (https://bit.ly/3mmsGCY), e lá eu citei que o Supremo não podia se- quer lançar mão da jurisprudência, porque cada acórdão podia ter 2 pá- ginas ou 20. Eram decisões formal- mente incomparáveis. Nesse sentido, um bom momento do Supremo este ano foi quando o presidente Luiz Fux passou a regulamentar as emen- tas das decisões, para que todas pas- sem a ter um determinado padrão. Isso permite que se possa comparar, saber qual a jurisprudência que pre- valece em cada caso.