No mês de março, tivemos marcantes fatos políticos liderados pelo Supremo: a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), a decisão do ministro Edson Fachin que anula as condenações de Lula na Lava Jato; e a decisão sobre a suspeição de Sergio Moro. Como o senhor avalia esse protagonismo do STF?

Tivemos mais. Tivemos o arquivamento do inquérito de Aécio Neves. Tivemos a anunciada vaga do ministro Marco Aurélio. Tivemos reiteradas decisões sobre o combate à pandemia. Ou não combate, como a liminar do ministro Kassio Nunes autorizando cultos religiosos presenciais no ápice de infecções. E o prefeito de Belo Horizonte resiste. Cada dia é uma surpresa. O enigma é este: o Supremo, que tem como função principal assegurar a previsibilidade do quotidiano dos cidadãos, governos e empresas, passa a ser um fator de insegurança jurídica. Por quê? Vejo, entre muitas, três patologias decisórias.

Quais seriam?

A primeira é a dificuldade de racionalizar a imprevisibilidade decisória, a partir das regras regimentais que o próprio Supremo se faz, mas não obedece. Chamo de racionalização a posteriori. Por mais que ministros como Fux (Luiz) e Luís Roberto Barroso tentem. Dou um exemplo simples. Vamos supor que o conselho administrativo de uma grande empresa se reúna para uma tomar decisão importante, sem regras claras de como ou o que decidir. Não se sabe a que horas começa a reunião. Qual a pauta. Nem se tem acesso aos estudos técnicos. Não se sabe quem decide, se é a maioria, o presidente ou um conselheiro solitário. Assim, a decisão imprevisível é a mais provável.

O Supremo faz regras, exige-as das partes, mas não as segue. O Supremo é, como diria Zuenir Ventura, uma cidade partida. Usam, então, do direito processual como escapismo. Não decidem o mérito. O que é prova lícita ou ilícita? Se escutas ilegais forem lícitas, haverá um incentivo supremo para a quebra de privacidade de pessoas e negócios. Lula cometeu ou não crime?

Só se sabe que o juízo de Curitiba não era competente. E que Moro não deveria ter conversado com a Força-Tarefa. As decisões de mérito são inferidas das decisões processuais. É como se o Supremo não conseguisse se decidir entre si.

Não há prazos fixos definidos. O relator pode pedir pauta no dia que quiser, mesmo 24 horas antes da votação. Pedidos de vistas não são devolvidos dentro dos 30 dias. Não há jurisprudência dominante. Processos colidem. Investimentos de longo prazo se retraem. Só a especulação de imediatismos tem coragem. Na Constituição, o Supremo decide pelo colegiado. Hoje, não. Usa o devido processo legal para os outros, mas não para si. Ele se desobedece a si mesmo.

Esse posicionamento tem gerado uma onda crescente de questionamentos, críticas e contestações ao Supremo, de que estaria inclusive avançando na esfera de outros Poderes. Isso não prejudica a democracia?

Esta é justamente a segunda patologia que aponto. A Constituição diz que os poderes são independentes e harmônicos entre si. Não são. Deveriam ser. Mas não são. O que de fato são é: interdependentes e tensos entre si. À judicialização da política, some-se hoje a judicialização da administração pública e privada. Decidir horário de abertura para agentes econômicos ou religiosos é ir longe demais. Determinar políticas de privatização, também.

Nem há instrumento de uma análise custo-benefício. O projeto de construção da Ferrogrão, por exemplo, uma ferrovia indispensável de cerca de 900 quilômetros de extensão, foi contestado pelo PSOL no Supremo. Foi suspenso pelo ministro Alexandre de Moraes, porque afeta cerca de 800 hectares de uma reserva indígena e florestal de 1.300.000 hectares. A judicialização administrativa às vezes parece excessiva. O mesmo ocorre com a interferência do Supremo, contra o Congresso, no caso da Vaquejada. É o Supremo que decide o que é patrimônio cultural? Se for assim, eles têm que decidir rapidamente. E definitivamente.

E qual o terceiro fator patológico provocador da insegurança jurídica?

Vamos antes definir as palavras.

Imprevisibilidade é decidir em desacordo com regras previamente estabelecidas. Incerteza é a possibilidade de a decisão optar entre A, B, ou C. Insegurança jurídica é a avaliação do impacto da decisão nas relações sociais e econômicas. Incerteza é inerente à democracia. Exemplo: eleições. E é também instrumento indispensável ao Supremo. A força do Supremo é justamente exercer a incerteza decisória. Se você já sabe de antemão o que vai ser sempre decidido, dispense o Supremo. Aperte o botão de ON. Sua força é poder escolher legitimamente entre A, B ou C. Supremo não é unívoco. Adam Przeworski (professor de Ciência Política da Universidade de Chicago, autor do livro Capitalismo e Social Democracia) tem uma assertiva clássica: se amas a incerteza, és um democrata.

Por isso, é indispensável que cada ministro tenha um entendimento diferente sobre o que é constitucional ou não. Este espaço de incerteza decisória é o que chamamos de discricionariedade judicial. Mas ela tem limites. Caso contrário, vira decisão arbitrária.

Quais são estes limites à discricionariedade do Supremo?

Um deles é a jurisprudência. Consenso entre ministros em dar peso maior a certas decisões anteriores já consolidadas. Cria expectativa mínima de que o Supremo siga essas decisões. Mas nosso Supremo não tem nenhum banco estatístico da jurisprudência dominante. Rui Barbosa trouxe esse modelo de Supremo para o Brasil. Veio pela metade. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.

Em outros países, há uma consultoria de processos dentro do Supremo para identificar como serão os acórdãos. Há um modelo fixo que permite comparações. Aqui, temos acórdão de 5 páginas ou de 40 páginas. Há acórdãos que tratam de um tema e outros que tratam de quatro temas. Não se sabe qual foi a doutrina vencedora especificamente naquele ponto.

Tecnicamente, sabe qual é a jurisprudência mais citada no Supremo até algum tempo atrás? Era um voto que o ministro Celso de Mello não deu, sobre licitação. Ia dar, mas não deu! A meio caminho, a ação perdeu o objeto. O voto não foi referendado. Mas como era um tema sobre licitação, que é frequente, acabou sendo adotado. Acabou opinião!

Como isto ocorre, na prática dos advogados?

Chega um cliente no escritório de advocacia. Expõe o caso. Contrata o advogado. Quando sai, o advogado chama o estagiário e diz: “Arranje uma jurisprudência a nosso favor”. Três dias depois, esse estagiário chega com uma de um tribunal do Acre, outra do Supremo de 1960, mais uma recentíssima do STJ etc. e etc.

O mesmo acontece com a parte adversa. Contrata o advogado, que chama o estagiário, que encontra jurisprudências de outros estados, outras épocas e sob outras perspectivas. E o ministro, o Supremo, vai julgar sem saber qual prevalece. Não se tem um banco de dados com normas. A jurisprudência não limita a discricionariedade.

E como os processos se prolongam, por anos, em um verdadeiro labirinto processual. As empresas são obrigadas a aumentar suas reservas de contingência. Aumentam os custos de capital. Estão a um passo do arbítrio judicializado.

Voltando aos episódios de Lula e de Moro, é um triste fim para a Lava Jato?

Depende. É preciso fazer algumas distinções: (a) a visibilidade pública e global da necessidade de se combater a corrupção como rotina nas relações econômicas público-privadas; (b) Lava Jato e Força Tarefa como são ações judiciais específicas; (c) Sergio Moro como juiz; (d) Sergio Moro como político candidato em 2022.

De meu ponto de vista, o combate à corrupção, como a pandemia e a fome, ainda será tema importante na eleição de 2022. Temos graves acusações, absorvidas pelos eleitores, mas ainda não esclarecidas. As acusações de corrupção envolvem a família do presidente Bolsonaro e segmentos do PT, sobretudo Petrobras e a família do ex-presidente Lula. Voltarão com força na campanha de 2022.

Quanto à Lava Jato e Força Tarefa, até hoje nem Moro (Sérgio), nem Deltan (Dallagnol) foram condenados por nenhum crime. As acusações não são conclusivas. O ministro Marco Aurélio, na mesma hora, disse: “Estão querendo transformar herói em vítima”. É óbvio que houve um desmonte por dentro destas operações específicas. Mas é difícil avaliar a repercussão, no conjunto, do Poder Judiciário. Acho que, consciente de seus poderes e da necessidade moral, juízes e procuradores não vão parar.

Sergio Moro não é mais juiz. Mas, mesmo sem se declarar, é um candidato forte para 2022 em quase todas as pesquisas. Assim como a imagem de Lula se cunhou como defensor dos menos favorecidos, Moro se cunhou combatente da corrupção. Esse é seu partido. Queira ou não, será um influencer.

Mas é muito cedo para qualquer previsão. Tudo no Brasil hoje é tão sólido que pode se desmanchar na hora. Na subida ou na descida da rampa Planalto.

Pelo cenário que o senhor nos apresenta, o âmbito do Judiciário hoje vive uma situação tão complexa como a que os economistas observam no campo da atividade econômica no Brasil…

O drama dos economistas é que muitos acreditam que a não realização de suas previsões financeiras e econômicas podem ser resolvidas pelo direito. Em geral, o economista precisa da força da lei para obrigar condutas econômicas que não foram espontaneamente resultado do mercado. Por isso falam tanto em incentivos. Quando incentivos não funcionam, aí entra multa, advertências, prisão etc… Acreditam que a coerção jurídica, isto é, a obrigatoriedade de cumprir a lei ‘legítima’, concretiza o desejo, o plano, a política econômica não realizada. Alguns economistas acreditam mais na força real da lei do que os advogados. O desafio da Economia é ser mais generosa com as outras disciplinas: dialogar, conversar e conhecer os mecanismos e limites. Não ter ilusão. Uns embargos de declaração no Supremo podem muito. Mas não transformar política econômica inviável em viável. Sem um casamento eficaz entre solução econômica com a legítima exigibilidade legal, será difícil caminhar.