Existe o militar da ativa, e o militar da reserva. Os militares da ativa e da reserva que trabalham no governo. E os que não trabalham. Existe a elite militar, e a tropa militar. E por aí vamos. Militar é gênero de múltiplas espécies.

Muitos tendem a perceber os militares como um só todo. Com obrigações, valores, missões, benefícios, ideologias, limites únicos. Como bloco uniforme e monolítico. Não são, não.

Diferem, e muito.

Toda a carreira do militar da ativa é formalizada, previsível e institucionalizada por critérios objetivados, diria o ministro Ayres Britto. Etapas adequadas ao mérito e treinamento que tiveram. O soldo é predeterminado. A hierarquia profissional prevalece.  São obrigados ao silêncio obsequioso. São proibidos de se manifestar politicamente.

Já com o militar da reserva que vai para o governo, não. É opção individual. Depende de sua vontade e do convite político. O cargo no governo, seja no primeiro, segundo ou qualquer escalão, necessariamente não corresponde ao treinamento que receberam na ativa. Ao ir para o governo, a renda individual do militar da reserva, em geral, aumenta.

A hierarquia é outra. Às vezes, generais da reserva disputam publicamente posições dentro do governo. Falam, debatem e discordam em público.

Mais ainda. Quando militar na ativa comete alguma falta, é julgado na Justiça Militar. De legislação e critérios próprios. Quando em cargo de governo, não. Generais vão depor diante de delegados. E, às vezes, são contraditados.

A evidência destas diferenças de posicionamento entre militar da ativa e militar da reserva, dentro do mesmo governo, está ficando cada vez mais nítida. Para o brasileiro, em geral. Globalmente também. E, com certeza, gera tensões internas. E externas.

O ministro Augusto Heleno enviou o seu alerta ao ministro Celso de Mello, como ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Mas não assinou somente como ministro. Sua letra mostra que assinou como general. Qual, afinal, a identidade dos militares em cargos de governo? A que são obrigados? Por quem falam? É o que o Brasil quer saber.

Desde 1988, as Forças Armadas fizeram claro esforço para recuperar a imagem dos militares desgastada pela ditadura. Nacional e internacionalmente. Não somente por causa dos limites constitucionais. Mas por voluntária autolimitação.

Conseguiram.

O que tem sido extremamente saudável para o estado democrático de direito.

Construíram confiança e legitimidade ao adotarem comportamento democrático diante do poder. Todas as pesquisas de opinião e de confiança nas instituições demonstraram o sucesso desta política por anos. As Forças Armadas, as igrejas e a imprensa são instituições em quem os brasileiros mais confiam

Esta conquista das Forças Armadas é um ativo que não precisa correr nenhum risco. Mas deve estar passando agora por um stress test. Devido ao crescente número de militares da reserva assumindo cada vez mais cargos e responsabilidades no governo federal.

Os militares da reserva no governo não têm responsabilidade direta sobre a imagem da corporação como um todo.  Mas, interferem. Queiram ou não. A responsabilidade direta pela imagem é dos militares da ativa fora do governo. Será que essa imagem vai passar imune a este período de extrema radicalização política?

Difícil saber. As tensões diferenças internas entre militares movem-se como placas tectônicas.

Mas, é certo que política e governo é um risco às Forças Armadas.

Lembro muito de um episódio simbólico, no final do governo João Baptista Figueiredo. Houvera reunião de ministros da cultura de vários países em Veneza. Representando o Brasil, foi, então secretário de Cultura, o designer pernambucano, Aloísio Magalhães. Que sofreu um acidente vascular cerebral em pleno discurso que fazia.

Faleceu lá mesmo. Tragédia.

Dias depois, alguns membros do Conselho da Fundação Pró-Memória foram a Brasília conversar com o ministro de Educação e Cultura, o general Rubem Ludwig. Que os surpreendeu ao dizer: “Quem deveria ter ido a Veneza era eu. Mas mandei o Aloísio. Não achei que a cultura brasileira deveria se apresentar ao mundo através de um general”.

Ou seja, há limites. Existem valores intangíveis para os militares ocuparem cargos no governo. E se politizarem.

Militar é carreira de estado. Não de governo.

Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, em 31 de maio de 2020.