O governo de Jair Bolsonaro tentou, no início, impor sua política ao coronavírus. Não conseguiu. O coronavírus manda e desmanda no Presidente e no governo. Exemplos abundantes.

O mais simbólico ficou por conta do Ministro Paulo Guedes. Propôs combater o coronavírus com a privatização da Eletrobrás!

O Presidente Rodrigo Maia, com o máximo de elegância possível, apontou que pautar privatização em agenda emergencial é irresponsabilidade.

Entende-se o esforço do ministro Guedes por reformas. Não se entende é desconhecer a realidade sanitária e econômica do Brasil.

Infelizmente, o ministro demonstrou a dessintonia entre a pauta da economia e a pauta das necessidades de saúde da população mais pobre. Carente. Do povo que lhe pôs lá. Do potencial trabalhador contagiado. Do futuro paciente. E sempre.

O tiro saiu pela culatra. Passou impressão de querer pegar carona no pânico do coronavírus. Tornou ilógica e oportunista a argumentação sobre a necessidade real de reformas.

Insistiu. Mudou para continuar igual. Tentou fazer acreditar que estava investindo cerca de 120 bilhões no combate. Não estava. Propôs nada mais do que uma gestão de caixa do deficit fiscal. Mudou o cash flow. Adia aquele pagamento, avança aquele direito.

O problema da pauta do povo não é de cash flow. É ter renda para viver e sobreviver. Com quarentena ou não. É de desigualdade de renda e de direitos.

Este deveria ser seu pano de fundo, como bem alertou a deputada Jandira Feghali, em excelente pronunciamento no Congresso Nacional.

O ministro ignorou a contaminação estrutural – a falta de emprego e de renda, a concentração de renda, de direito de propriedade – como se fosse conjuntural. Não é.

Quarentena sozinha não cura a pobreza. Mesmo emergencial.

Em 1964, Roberto Campos pensava assim também sobre a crise habitacional. Diagnosticavam que os favelados não tinham casa porque não tinham financiamento de longo prazo. Era apenas problema de cash flow. Criaram o BNH. Oferecia crédito mais longo. Trinta anos. Resolveria o problema da moradia e da propriedade. Não resolveu.

Erraram. Perderam. Explodiram o Sistema Financeiro de Habitação.

Esta semana, o coronavírus vai testar, outra vez, as políticas econômicas dos governos federal, estadual e municipal.

Vai se confrontar com a informalidade, ou ilegalidade, ou exclusão. Tudo aliás tem o mesmo significado: pobreza. Só as palavras mudam.

O que ocorrerá quando o coronavírus chegar à Rocinha, no Rio de Janeiro?

Ou às dezenas de Rocinhas Brasil afora?

Lembro sempre da resposta de uma senhora sem-teto quando lhe perguntaram se ela não considerava ilegal invadir propriedades como ela mesma tinha feito.

Ela, com tristeza e firmeza, respondeu: “Doutor, aqui, ilegal sou eu!”

Pedro Cantisano, doutor em História pela Universidade de Michigan e professor da Kenyon College, em Ohio, lembra o episódio da Revolta da Vacina, de 1904.

Para combater a febre amarela, Oswaldo Cruz mandava invadir as residências dos pobres para executar o que chamavam de expurgo sanitário. Como hoje, não reinava o direito de propriedade para as classes pobres. Moravam amontoados em cortiços, os precursores das favelas.

A ortodoxia fiscal da teoria econômica ortodoxa, mesmo de boa-fé, é quase cega diante de seus resultados, como anota André Lara Resende.

Como é possível isolamento quando sabemos que milhões de brasileiros não têm metros quadrados suficientes? Como manter a distância de dois metros entre o infectado e o não infectado dentro de um barraco? Sem água, saneamento. Sem praia.

A política econômica ja ortodoxa e usada dogmaticamente desconhece seus próprios resultados. Colhe informalidade quando promete emprego.

Vai tornar irrelevante ou explodir o sistema legal e suas instituições.

O vírus mostra a fratura exposta da desigualdade que nos impede do progresso.

Nesta hora, ajudemos e confiemos nos esforços dos governos. Sabendo que não bastam. É hora de nossa hora também.

O professor Pedro Cantisano acredita que tudo vai depender da mobilização comunitária. Como sempre ocorreu.

“A pandemia revela que somos interdependentes. Se o governo não se mobiliza para dar assistência, as pessoas se mobilizam para organizar a vida em comunidade. Hoje, mais do que nunca, esta mobilização é necessária.”

Temos que identificar as boas práticas sociais, espontâneas, sem governos, com a inciativa privada, as igrejas, os intelectuais e cientistas que naturalmente nascem neste momento. Divulgá-las. Estimulá-las. De uma política pró-invenção comunitária.

Não vai vir dos governos.

Mas, com sorte, de milhões de brasileiros, ilegais, informais e excluídos, eventualmente contaminados eleitores do amanhã, em outubro.

 

Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense, em 21 de março de 2020.