Artigo originalmente publicado na Revista da OAB – Advocacia Hoje, Setembro de 2019, NO. 002.

Cada dia fica mais claro que texto constitucional sozinho não produz segurança jurídica. Nem mesmo texto constitucional em movimento, isto é,  acrescido de sua interpretação judicial.

Existe em volta destas duas camadas geológicas, outra, uma terceira. Mais rígida. E que impunha limite às outras duas de rigidez menores.

Esta última camada está se tornando mais visível. No Brasil e no ocidente. Pior, está se fragmentando.

Até mesmo em países que se pretendem criadores e exemplares do rule of law. Do estado de direito.

O exemplo mais recente é a proposta de Boris Johnson, de dar nova e inédita intepretação à, digamos, “convenção- texto” constitucional inglês, que permite a suspensão das atividades do parlamento por até cinco semanas.

Nesta manhã, conversei com Sua Majestade, a Rainha, para solicitar a suspensão parlamentar na segunda sessão de setembro, antes de iniciar a segunda sessão com um discurso da rainha na segunda-feira, 14 de outubro. Uma característica central do programa legislativo será a prioridade número um do governo, se um novo acordo for apresentado ao Conselho da UE, para introduzir o Projeto de Lei do Acordo de Retirada a um ritmo para garantir sua aprovação antes de 31 de outubro (tradução do autor).

Esta suspensão se justificava apenas nos períodos de conferências dos partidos, com tempo médio de uma a duas semanas de duração.

Agora se propõe suspender o poder do Parlamento por questão explicitamente política: favorecer a estratégia de Johnson no brexit.

Quebrou-se o hábito cultural que garantia a neutralidade política e a previsibilidade decisória, a segurança jurídica. Inédito.

Ampliou-se uma convenção, que nada tem a ver com a jurisprudência, podendo, no entanto, nela se concretizar.

Este é perigoso caminho sem volta.

Nada garante que um próximo Primeiro-Ministro use igual estratégia de neutralizar o parlamento para facilitar a política partidária de plantão em eventual qualquer governo.

Elizabeth II manteve seu hábito de concordar com as propostas que lhe são trazidas pelo Primeiro-Ministro escolhido pelo Parlamento.

Mesmo quando esta proposta seja a de calar, por motivos agora políticos, o próprio Parlamento.

Mas Boris Johnson, não. Vai ter que ir para a Suprema Corte do Reino Unido. Aumentou a insegurança jurídica.

É como se esta decisão estruturante da democracia inglesa resultasse de três círculos, camadas concêntricas de diferentes graus de rigidez em favor de segurança jurídica.

A primeira camada é a do texto constitucional. A matéria-prima é a legalidade estatal. A rigidez é menor.

A segunda camada é a da intepretação constitucional. A matéria-prima é a efetividade. A capacidade de ser exigida pela força estatal. Em princípio, a rigidez é maior. Melhor garantiria a segurança jurídica nos casos concretos.

Finalmente a terceira camada é a da cultura, do hábito do rule of law, do estado de direito. Cuja matéria-prima é a sua aceitação social. A crença de que sendo legal e efetiva, a decisão constitucional é legítima.

Só se constrói e consolida em anos de democracia. A mais decisiva de todas, sobretudo na Inglaterra, que se orgulha fundadora do rule of law.

Parece ter sido abalada.

O hábito é a segunda natureza do homem.

Esta última camada cultural é limite, muro, até mesmo prisão benigna da volatilidade da intepretação político-jurídica.

Agora rachou. O processo decisório do rule of law formal está, como diriam os franceses, “craquelé”.

Este formalismo cultural, muito além do positivismo legal estatizado, dormia em sono natural.

Sono capaz de fazer com que as sociedades e os países de estado de direito sonhassem, mesmo acordados.

O sonho parece ter despertado.

Esta concepção da constituição como camadas geológicas a favor da segurança jurídica é útil para entender o Brasil de hoje.

Basta atentar para as decisões do Supremo. No seu liga/desliga. No seu personalismo. Nas suas instantaneidades . Destruidoras da cultura jurídica a favor de um mínimo de previsibilidade. Amantes do ineditismo, do distorcido e até mesmo de algumas inconstitucionalidades autoritárias.

Falo de cultura jurídica aplicada, do constitucionalismo de realidade, a garantir um mínimo de segurança na ordem jurídica liberal.

A cultura jurídica liberal formal não consegue mais lidar com a complexidade dos tempos atuais.

Quando comparamos o atual Supremo com o dos anos cinquenta, por exemplo, muito bem descrito por Felipe Recondo em seu primeiro livro, “Tanques e togas: o STF e a ditadura militar”, ficamos com a sensação de que o Supremo hoje é muito mais volátil.

Poderíamos até dizer que estamos na fase em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Não fosse este conceito, tão marcado por seus usos ideologizados. O que não lhe desmerece de todo. Podendo ser vaticínio que às vezes se concretiza.

A fragmentação das camadas geológicas constitucionais é um dos indícios da crise da democracia em que todos vivemos. Aqui e acolá.

Os pilares da terra democrática tremem?