O Corregedoria Nacional de Justiça teria pedido explicações à juíza Kenarik Boujikian por críticas feitas, na Folha de São Paulo:

( a ) a interpretação do Ministro Dias Toffoli de que a  implantação do regime antidemocrático de 1964 fora fruto de um “movimento” e não de golpe de estado; e

( b ) a atual “disfuncionalidade” do Supremo.

Esta atitude dos três – Ministro, juíza e Corregedor – coloca problemas de interesses além da magistratura. Do país.

Pode um juiz discordar de uma interpretação da história do Brasil feita pelo Presidente do Supremo? É uma desobediência à hierarquia judicial a ser apurada?

Pode um juiz criticar o desempenho funcional do Supremo?

Está em jogo o limite da liberdade de expressão de um juiz.

A Loman proíbe magistrado de se pronunciar fora dos autos. Proíbe também de criticar decisões judiciais de outro colega. Seja o juiz criticando o Ministro. Ou vice versa.

A Loman abrange todos os magistrados. Não exclui os ministros do Supremo.

De resto, não se aplica ao caso. Nenhum dos dois se pronunciou durante o exercício da magistratura. Ele, em pública conferência acadêmica. Ela, em público painel na Folha.

A constituição também proíbe atividade político-partidária do magistrado. Inclusive de ministro do Supremo.

No caso, ou ambos violaram a constituição, ou nenhum.

Mesmo porque o Ministro deu, instantaneamente, “uma autointerpretação autêntica”. É logico. Do contrário, não faria. Para ele, sua interpretação do passado não consubstancia atividade político-partidária.

A questão é outra.

Se o conteúdo da polêmica não foi político-partidário, a escolha da oportunidade, do momento para expressar a interpretação histórica foi política. Com inevitáveis consequências político-partidárias.

O Ministro queria repercussão de sua fala. Não foi gratuita.

Não foi uma liminar. Foi mensagem em momento eleitoral específico. Audível por uma audiência política e militar. Favorecendo um partido no debate político ideológico.

Considerando o contexto, o discurso, por si só, pode ser um agente.

Alegam alguns que o Presidente do Supremo tem a competência de se pronunciar sobre questões de interesse entre o Poder Judiciário e a opinião pública.

E o juiz não.

Neste sentido, a mensagem seria institucional. Tentativa de evitar radicalismos. De evidenciar certa neutralidade. Estancar, por exemplo, crescente politização dos ministros do Supremo. O que seria ótimo.

A questão, porém, é a concepção de presidência do Supremo que a mensagem sugere.

A competência legal do Presidente do Supremo não é ser conciliador ou negociador entre radicalismos ideológicos e partidários. Em momentos eleitorais ou não.

Sua função é defender a independência do Poder Judiciário. O que não estava em jogo.  A de seus juízes. O que não estava em jogo.

É apenas julgar o que é constitucional e o que não é constitucional. A história não estava nos autos.

Sair deste parâmetro constitucional de exercício da presidência corre o risco, por melhores que sejam as intenções, de politizar e expor o próprio Supremo.

Chama-se espada de Dâmocles. A espada que, na lenda grega, é segura pelo alto, apenas por um fio de crina de cavalo, sob a cabeça de Dionísio, o rei.

A espada é perigo constante para quem exerce o poder. Ameaça iminente para quem está embaixo dela. Pode cair e matar subitamente. No caso, pode matar a liberdade do juiz.

Mais. Apurar uns casos e não outros, sem prévios critérios objetivos, pode constituir escolha direcionada. Política.

O Judiciário, até hoje, não atualiza sua Loman. O que poderia evitar estes incidentes.

Entre ser ameaça ou equívoco, prefiro considerar que a atuação do Corregedor é equívoco.

Considera, equivocadamente, como desrespeito à hierarquia jurisdicional e administrativa o exercício da liberdade que o juiz, como cidadão, tem de expressar suas opiniões fora dos autos, sobre fatos históricos.

Equivocadamente, ameaça o direito de os juízes opinarem, advertirem, proporem, sugerirem medidas que aprimorem o funcionamento do próprio Judiciário.

A propósito, anos atrás, pesquisa de Maria Tereza Sadek mostrava que as juízas eram mais críticas em relação ao Supremo do que os juízes.

Sem o direito de cada juiz poder avaliar, vocalizar e criticar a eficiência de qualquer instância, o Judiciário vai se fechar nas próprias trevas. Em nome da hierarquia e não da imparcialidade.

 

Artigo publicado no JOTA, em 24 de outubro de 2018.