*A Academia Brasileira de Letras promoveu ciclo de conferências do mês de junho de 2018, intitulado A cultura em processo, sob coordenação do Acadêmico e professor Domício Proença Filho, com palestra do jurista e educador Joaquim Falcão (Acadêmico eleito para a Cadeira 3 da ABL, no dia 19 de abril).

O tema escolhido foi Aspectos da cultura brasileira contemporânea.

O evento aconteceu quinta-feira, dia 21 de junho, no Teatro R. Magalhães Jr., Avenida Presidente Wilson 203, Castelo, Rio de Janeiro.

Confira a íntegra:

Aspectos da cultura brasileira contemporânea
Ou
Gilberto Freyre, Roberto Marinho e Celso Furtado: Estratégias comuns de ação

I. O Convite tópico e o agradecimento
II. As perguntas básicas
III. A convivência como argumento
IV. O traço cultural
V. A tensão e o esgarçamento
VI. A ampliação indutiva do Brasil
VII. O modelo dentro de si mesmo
VIII. Nacionalistas a sua maneira
IX. Ativistas de si mesmo
X. Autoestima quase egocentrismo
XI. O final. Revisitando a tensão cultural e o esgarçamento social
I. O Convite tópico e o agradecimento

O título “Aspectos da cultura brasileira contemporânea”, sugerido por Domício Proença é um topos.

No dizer de Theodor Viehweg, topos são como espaços vazios, mas delimitadores da linguagem e do pensamento.

O que são ‘aspectos’? O que são ‘gerais’? O que é ‘cultura’? O que é ‘contemporânea’?

Este convite tópico foi, pois, gentileza, privilégio, oportunidade para, como conferencista, especificar e concretizar esse título.

Convite para preencher esta caixa do senso comum com certa liberdade.

Concederam-me discricionariedade e o poder do dizer.

Mas não absolutos. Limitados pelo interesse e atenção da audiência.

Um ato de confiança.

Muito agradeço a Domício, Ana Maria e Marco Lucchesi.

II. As perguntas básicas

A pergunta, o problema básico que me conduz é:

Qual seria o traço ou característica que eu consideraria, se não os mais decisivos, pelo menos bastante importantes da cultura brasileira contemporânea? De hoje?

Traço único inexiste.

São muitos.

Vamos escolher.

Para responder, vim acompanhado de Gilberto Freyre, Celso Furtado e Roberto Marinho.

Por que?

Eles vão me ajudar.

Porque com eles convivi profissionalmente. Com eles muito aprendi.

Essa convivência é a base empírica de minha argumentação.

Vão servir de guia, guión em espanhol, de roteiro de exemplaridades.

Trouxe-os também porque acreditei que lhes fossem de agrado: a companhia de dois acadêmicos, Celso Furtado e Roberto Marinho.

E de um quase acadêmico, diria Gilberto Freyre. Ou de um supra acadêmico, poderia dizer ele também, molequemente sorrindo para si próprio.

Tomando emprestado eventual tipologia de Celso Furtado, explicitada em seu discurso de posse aqui nesta Academia, em 1997, os três fazem parte dos que:

“Ampliaram o horizonte daquilo que seus contemporâneos diriam como possível.”

Foram, pela ousadia da coragem, além do apenas possível.

Nas ciências sociais,
No planejamento da economia,
Nos meios de comunicação.

Em qualquer lista dos brasileiros mais influentes do século XX, lá estarão.

Através deles, a cultura do século XX se prolonga na cultura do século XXI.

Está presente em nossos dias.

III. A convivência como argumento

Nossa convivência não foi íntima, mas foi próxima.

Não foi pessoal, mas foi profissional.

Foi tanto de proximidades, quanto de distanciamentos.

Às vezes foi promontório. Outras vezes foi arquipélago.

1. A convite de Gilberto Freyre criei o Departamento de Ciência Política na Fundação Joaquim Nabuco. Onde já viviam as irmãs: pesquisa econômica, sociológica e antropológica.

Depois fui um de seus vices, Superintendente de Documentação. Editor de mais de trinta livros. Convivemos quase diariamente.

2. Em tarde agradável no apartamento de Brasília de Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, assumindo o Ministério da Cultura, convidou-me para ser seu vice-ministro por indicação do comum amigo Luciano Coutinho.

Não pude aceitar. Estava de Olinda mudando a família para o Rio. Celso insistiu. Aceitei ser presidente da Fundação Pró-Memória, no Rio.

Comandei mais de trinta instituições culturais: da Biblioteca Nacional, à Cinemateca Brasileira, ao Museu Lasar Segall, ao Paço Imperial e tantos outros.

3. Em seguida, através do amigo permanente Pedro Carvalho, Roberto Marinho e seus filhos, a quem não conhecia, me convidaram para dirigir a Fundação Roberto Marinho.

O que fiz por cerca de dez anos, quando conheci muito dos senhores.

Com Arnaldo Niskier, inclusive, levamos a réplica da estátua de Machado daqui de frente do Petit Trianon para a Avenida Brasil, em Madrid.

Sou dos que acreditam que por detrás de cada ação, bate um coração, os desejos, as ambições, as possibilidades e os limites do autor.

Gilberto Freyre logo classificaria esta minha estratégia como sendo uma sociologia de lideranças.

Não chego a tanto. Nem pretendo.

Mas é com essa convivência que pretendo estar com os senhores hoje aqui.

Basta mencionar que, no átrio da capela dourada da Igreja de São Francisco em Salvador ao lado da sacristia, os painéis de azulejos do século dezessete tem dísticos e um deles diz:

A virtude se traduz na ação.

Ou seja, a ação é revel-ação. Revela-se além e sobre si mesma. Muito além de sua objetividade visível.

Através da digamos, observação participante, tentei entendê-los como subjetividades.

E, através daí, em suas ações e objetividades e influências, tentei entender parte dos milhares de práticas formadoras e ampliadoras da cultura brasileira: a dos seus líderes.

IV. O traço cultural

Volto à pergunta principal: qual o traço importante da cultura brasileira contemporânea?

Seja na cultura artística,
Seja na cultura política,
Seja na cultura jurídica,
Seja mesmo na cultura econômica.
Que traço é este?

Que Brasil é este?

Como perguntou certa feita Fernanda Montenegro a milhões de telespectadores brasileiros, em nome da Fundação Roberto Marinho.

É um traço transversal.

Vou desenhá-lo.

1. Está presente na cultura artística, na proibição de acesso a determinadas exposições públicas em museus e galerias, como a recente denominada Queermuseu.

Tanto quanto reversamente está presente na ampliação do acesso popular a novos museus e galerias, novos espaços públicos e privados, como o Museu do Amanhã, o Instituto Ricardo Brennand, o Instituto Moreira Salles, a Casa Roberto Marinho.

Mobilizando milhões de visitantes por anos.

2.Este traço está presente também na cultura política moldada pela rígida estrutura dos atuais partidos políticos, com suas antidemocráticas elites intradirigentes e a sempre adiada reforma eleitoral.

Rigidez que é um verdadeiro Muro de Berlim, feito de tempo de televisão e financiamento público da nossa democracia.

Está presente na desilusão de eleitores com corruptos candidatos sem projetos. Desilusão refletida no desinteresse eleitoral, votos em branco e abstenções.

Tanto quanto está presente no seu reverso. Nas candidaturas independentes e na mobilização ousada do ativismo eleitoral dos jovens.

Jovens e novos candidatos que, para poder falar, fazem campanha para perder.

Campanha eleitoral para perder é hoje uma nova forma de protesto político.

Continuo.

3. Este traço também está claramente presente na cultura econômica que molda as políticas macroeconômicas de estabilização da inflação e das tentativas de controle do déficit fiscal.

E, ao mesmo tempo, convive com cerca de 12 milhões de desempregados e de um crescimento do PIB sempre anunciado, pouco realizado.

Reversamente, está presente na microeconomia, na ousadia de jovens brasileiros crescentemente empreendedores, sobretudo nas áreas mais populares. No setor de serviços. Nas favelas e periferias.

Cresce um novo tipo de empresário: o do eu sozinho.

Sem subsídios de juros ou desonerações fiscais.

4. Finalmente, este traço cultural penetra na cultura jurídica também. Cerca de 40% da população carcerária não tem nenhuma condenação judicial formal e vem dos extratos inferiores de renda.

Em compensação, está presente na ousadia da Lava Jato, que já investigou cerca 238 parlamentares, condenou em primeira instância
160 pessoas, e em segunda instância 77 pessoas. São 158 acordos de colaboração premiada e 10 acordos de leniência. Não é apenas um processo judicial. É uma jovem nova maneira de fazer justiça.

Poderia continuar com muitos outros exemplos, em múltiplas áreas da cultura.

Mas acredito suficiente para o delinear o caráter muito além do apenas dicotômico, mas complexo e transversal deste traço.

V. A tensão e o esgarçamento

Este traço é uma tensão.

Que ao mesmo tempo une e separa o múltiplo Brasil.
Como a tensão de uma inacabada disputa de cabo de guerra de muitos terminais.

Tensão é um estado que ameaça romper-se.

Trata-se de tensão que foi crônica, mas agora parece ser aguda.

Muitos de nós experimentamos quotidianamente esta tensão, sobretudo no Rio de Janeiro.

Celso Furtado gostava da palavra esgarçamento. Usa-a diversas vezes em seus textos.

Uma vez me disse que o que ele mais temia era o esgarçamento do tecido social brasileiro.

Não me disse golpe de estado, revolução ou rupturas institucionais. Nem rupturas financeiras, como default ou calote.

Usou a palavra esgarçamento social. Stress. Sintoma que anuncia ruptura com a realidade que nos cerca.

Sinal de alerta. Sinal amarelo. De um futuro provável a evitar. Desviar.

Esse esgarçamento que Celso temia, ontem, está cada dia mais perto de nós, hoje.

Na violência urbana
No corporativismo dos governos
Na ineficiência das políticas públicas
Na desinstitucionalização do estado democrático de direito
Na substituição da competividade empresarial pela corrupção estamental, diria Raymundo Faoro.

Está presente, sobretudo
Na luta qualquer
Por todos os meios quaisquer
Para a sobrevivência, moral ou imoral qualquer.

A cultura está inquieta.

Procura, mas não acha.
Será que daqui para frente vai ser sempre assim?

Estamos diante de um crescente e inédito Brasil, que bate à porta da casa do próprio Brasil.

Abre-se a porta, mas se tem medo. Tanto de entrar quanto de fazer entrar.

A casa, parece ainda, é pequena e desorganizada.

Mas este inédito e cheio de diversidades Brasil não quer mais esperar do lado de fora.

Quer esperar dentro, no abrigo da liberdade política e da igualdade, de oportunidades e financeira.

Este abrigo se chama estado democrático de direito e suas políticas públicas que se espera sejam eficazes.

Está chovendo. A multidão quer entrar. A chuva é o atraso.

VI. A ampliação indutiva do Brasil

Proponho analisarmos esta cena.

Alunos da Faculdade de Direito do Recife impedem Gilberto Freyre de entrar na faculdade para realizar uma conferência então programada.

Protestam com cartazes que o chamam de Meteco. Isto é, aquele que não é cidadão. Não pertence à cidade.

Não pertence à Faculdade de Direito do Recife. Ou melhor, não pertence ao templo sistematizador da cultura jurídica.

Ou, em bom pernambucanês diria Marcos Villaça: Gilberto era um enxerido.

Por que?

Porque o sociólogo, começava a disputar com os juristas da época o trono de intérprete do Brasil.

Concomitantemente, começa a disputar o mesmo trono com os sociólogos de tendências marxistas da USP.

A disputa com os juristas era antes de tudo metodológica. O sociólogo tentava ver o Brasil como ele laicamente seria de fato.

O jurista o via como ele catolicamente deveria ser.

A disputa é da descrição empírica observável contra a prescrição jusnaturalista imaginada.

No fundo, Gilberto e seus colegas sociólogos e antropólogos de todos os matizes, metecos, estavam desformalizando o Brasil dos juristas.

A cultura metafísica escondia o Brasil.

Um novo Brasil aparecia.

Neste revelar do Brasil, alinhava-se, embora divergissem, com os sociólogos da USP.

Aliás, até hoje não sabemos porque Gilberto recusou o convite para participar da banca de doutoramento de Fernando Henrique e Octavio Ianni.

Escrevia Florestan Fernandes, responsável pela cadeira de Sociologia I:

“Queríamos prestar-lhe uma homenagem, que constitui ao mesmo tempo uma honra para nós (…) Poderia fazer o sacrifício de aceitar este encargo? ”

Os sociólogos da USP pretendiam explicar o Brasil. Gilberto pretendia compreender o Brasil.

Explicar sugere uma relação de causalidade no conhecimento. Compreender sugere um momento de intuição e mistério.
Sintomaticamente, Celso Furtado cursa a Faculdade Nacional, mas não segue a profissão de bacharel.

Como Gilberto, não seria o neometafísico do Brasil no século XX.

Opta então pela economia, especificamente através da história econômica.

Outra forma de revelar o Brasil.

O atraso não era um datum alheio de responsabilidade estrangeira. Mas um auto constructo de responsabilidade nossa.

Encontrável dentro do Brasil mesmo. Celso foi procurá-lo. Celso decide espiar o mundo de pós-guerra e vai para a Europa. Depois percorre o Nordeste e, em seguida, Chile e América Latina.

Vai procurar, na história, o encadeamento – a expressão é sua e explicaria o atraso.

O planejamento estatal seria uma das soluções para o problema do atraso.

Ou seja, ambos Gilberto e Celso, procuraram ver o físico do Brasil. Antes de imaginar a metafísica do Brasil.

Foram indutivos.

Assim também foi Roberto Marinho, que, com o espírito empresarial, levou o sinal da Globo a mais de noventa por cento do território brasileiro. A televisão chegava antes da geladeira ou da água filtrada.

A vitória na concorrência empresarial era seu método de concretudes para bem conhecer e apreender o Brasil.

Mas qual a principal característica deste indutivismo?

VII. O modelo dentro de si mesmo

Nenhum dos três tentou enquadrar o Brasil num modelo abstrato de sociedade produzido religiosa ou externamente.

Onde a realidade brasileira entraria “a martelo”, dizia Celso.

O que não lhes significa xenofobia, unilateralismos ou isolacionismos.

Ou uni-isolacionismo, palavra inventada esta semana para explicar Trump. É possível, Bechara, uni-isolacionismo?

Os três reconhecem e vivenciam, e sobretudo se beneficiam, do contato com culturas estrangeiras em suas decisões profissionais.

Mas seria do Brasil palpável que deveria sair o modelo do próprio Brasil.

“Regressei a Santiago com abundante material sobre o Brasil (…). Não adianta comparar modelos abstratos nem vestir a realidade com as camisas pré-fabricadas dos modos de produção”.

E, assim, Celso também se afastava dos destinos marxistas.

A estratégia indutiva do conhecer e agir muito diferia, por exemplo, da de Rui Barbosa.

Influenciado por um constitucionalismo americano, importou instituições jurídicas alheias, sem passar pela alfândega de nossa realidade social.

Como na Constituição de 1891, com a separação tripartite dos poderes. Esqueceu nossa experiência histórica de mais de cinquenta anos de Poder Moderador.

Esqueceu, também, quando radicalizou o liberalismo dos mercados europeizados, o que nos conduziu ao encilhamento.

Radicalmente diferente, também, de eventuais francesismos de Paulo Prado.

A quem simbolicamente Eça de Queiroz envia uma contundente carta criticando as importações por alguns brasileiros da cultura europeia.

Celso Furtado inclusive alertava: “A construção do futuro tem que estar aberta à audácia, mas não se faz com a destruição do passado. Somente quando plenamente assimiladas são realmente fecundas as contribuições externas. ”

A tentativa frustrada dos herdeiros de Eugênio Gudin, Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, de criar um mercado de capitais no Brasil ainda na década de sessenta, com certeza, revela a pertinência desse alerta.

O modelo regulatório americano de mercado de capitais, com CVM no lugar da SEC, por exemplo, queria se impor à martelo na realidade brasileira.

Jean Piaget, filosofo, educador e cientista suíço, tão a gosto de Rosiska Darcy, também alertava sobre o risco de se ler muito antes de pesquisar.

Acaba-se seduzido e pesquisando o problema alheio.

Primeiro encontrem seu próprio problema, encomendava. Só depois leiam tudo em torno dele.

Eles escolheram no Brasil três problemas para enfrentar:

Como corrigir as falhas de mercado através do planejamento estatal?

Como explicar a sentimentalização e mestiçagem cultural que nos identifica?

Como comunicar tecnologicamente o Brasil ao Brasil?

Uma estratégia comum de conhece-te a ti mesmo.

Gilberto enfatizou a intuição e observação sociológica.

Celso enfatizou o encadeamento histórico rigoroso e as estatísticas.

Dr. Roberto se baseou no pragmatismo e competição empresarial.

O ponto de partida foi diferente.

Mas o ponto de chegada foi o mesmo: ampliaram indutivamente o Brasil.

Mas o que quer dizer ampliaram o Brasil?

Quer dizer, amparo-me na moderna ciência da comunicação: identificaram, produziram e colocaram em circulação milhões de informações novas sobre o Brasil.

Seja através dos óculos da teoria social ou da ação empresarial. Influenciaram a pauta de construção do Brasil do século XX.

Estas novas informações sobre o Brasil, na verdade um conjunto de dados desconhecidos, pautaram e pautam até hoje discussões, políticas, desenhos, modelos.

VIII. Nacionalistas a sua maneira

Nesta tarefa do conhece-te a si mesmo a que se entregaram, ouso dizer que os três foram nacionalistas a sua maneira.

Vejam esta cena que lhes trago.

Imaginem três pessoas em pé, nos belíssimos jardins do Cosme Velho, hoje Casa Roberto Marinho aberta à visitação de todos, e que muitos dos senhores conhecem, Laura e Cícero Sandroni, com certeza.

Flamingos vermelhos ao fundo, doados por Fidel Castro.

Era um de seus jantares com Dona Lily.

“Dr. Roberto, quero lhe agradecer porque quando a Rede Globo optou por fazer novelas, o senhor criou um mercado de trabalho inexistente para o artista nacional”.

Disse-lhe, com imensa cerimônia, o ator Tarcísio Meira.

Dr. Roberto agradeceu e completou: “Criou mercado e também deu dignidade a profissão de artista”.

Dr. Roberto aludia ao fato de que as novelas ajudaram no reconhecimento social do trabalho do artista. Hoje, celebridades culturais.

Até então somente o escritor, o literato tinha reconhecimento social maior na cultura brasileira.

Aproximemos mais dessa cena.

Quais as consequências para a cultura nacional da decisão empresarial de Dr. Roberto?

Importar enlatados produzidos nos Estados Unidos era o caminho mais fácil e mais barato. Mas investiu-se na produção brasileira.

Os americanos expressavam até um certo desdém pelas novelas. Chamavam de soap opera. Desdém também pela ópera italiana e saxônica.

Como se as minisséries não fossem espécie do mesmo gênero.

A televisão italiana optou pelos enlatados americanos. Assim o esplendor de sua indústria cinematográfica, o seu Neorrealismo.

Não pode migrar para o novo mercado tecnológico: a televisão.

Acabou com seus futuros Fellinis, De Sicas, Mastroianni, Giuliettas, Viscontis, Monicas Vitti e tanto mais.

O resto da história os senhores conhecem de perto. Com a ousadia do talento de Boni e sua equipe, o Brasil inteiro ficou mais Brasil, com Gabriela, João Grilo, Isaura, Tieta, Dona Benta, Capitão Rodrigo, Roque Santeiro e tantos outros.

Esta casa, a ABL, passou ser então, e é, o celeiro do Brasil. A fotografia, o cinema, o banco de dados do Brasil.

Nosso Big Data, imaginário, às vezes, nem tanto.

Como foi possível esse, digamos, nacionalismo cultural?

Primeiro, Roberto Marinho captou a tecnologia que não tínhamos através da associação com o grupo Time Life.

Desfez essa associação, reteve seu executivo principal, Joe Wallach, e usou então a tecnologia para produzir conteúdos locais. Ampliou o mercado de trabalho e o da literatura nacional.

A efêmera associação com Time Life foi o caminho para uma opção cultural da programação em favor do Brasil.

Não posso agora deixar de fazer uma analogia com Celso Furtado. Pois este é nosso objetivo.

Uma das disputas permanentes de Celso era que o desenvolvimento nacional só viria quando a política econômica desse preferência à ampliação do mercado interno.

E não às importações e buscas de investimentos estrangeiros. Pois os mercados externos nasciam com DNA nacionalista por mais globalizantes que fossem.

Obedeceriam sempre a seus próprios interesses.

“Não devemos perder de vista que a lógica das transações internacionais sempre foi adversa para os países de economia dependente”, dizia Celso Furtado.

Ou seja, cada um tinha sua lógica e a lógica comum era de concorrência entre nações. No máximo, deveríamos buscar complementariedades.

Em outras palavras. O que Celso defendia como estratégia macroeconômica prioritária era a ampliação do mercado interno, donde há o mercado de trabalho, criação de empregos.

Dr. Roberto a praticou no ambiente da microeconomia empresarial.

Ampliou o mercado de trabalho televisivo a partir da cultura nacional, sobretudo.

Nacionalistas, avant la lettre?

IX. Ativistas de si mesmo

Entro agora na terceira e última característica, que foi mútua.

Não foram apenas observadores da realidade brasileira. Foram, a sua maneira, agentes também. Na classificação de Richard Rorty.

Sabiam a importância do imaginar, do pensar, do agir e, sobretudo, do auto fazer-se nacional e globalmente.

A ambição nacional de cada um desdobra-se em vários momentos de suas vidas, em ambição global.

Gilberto não queria se adaptar ao mundo luso brasileiro. Ao contrário. Queria que este mundo se adaptasse às suas ideias.

O mesmo com Celso na Cepal. O planejamento econômico que construía deveria ganhar a América Latina.

Roberto não queria ser CBS ou NBC ou BBC, queria que o mundo visse a TV Globo.

Aliás, Rorty lembra que a perda de influência da esquerda acadêmica na definição dos destinos dos Estados Unidos deve-se exatamente ao fato de que essa esquerda fechou-se em si mesma, num autofágico diálogo etéreo.

Não saiu de si mesma e não se deu ao mundo.

Nenhum dos três pretenderam se fechar em si mesmo.

Como empresário, Roberto Marinho poderia ter-se limitado ao mercado local, como milhões de outros.

Como intelectuais, Celso e Freyre poderiam ter se limitado a fazer suas pesquisas, publicar seus livros, dar suas conferências.

Como a imensa maioria dos intelectuais, por exemplo.

Mas, para eles, o laboratório e a audiência eram o próprio Brasil.

E, às vezes, o mundo.

Foram o que eu chamo de ativistas de si mesmos.

Mas, atenção.

Para ser ativista era necessário ocupar posições de mando. De comando, se quisessem.

Dizia Celso: “Nenhuma fatalidade respondia pelo atraso do país (o Brasil). Devíamos procurar as causas na história, assinalar as motivações dos que ocupando posições de mando tinham tomado decisões”.

Não foi por menos que Celso Furtado se dispôs a ocupar posições de mando no governo.

Como Ministro e criador da Sudene, no governo João Goulart. Na formulação de planos de ação, na Cepal no Chile.

No Ministério da Cultura, no governo José Sarney. Aliás, tenho a impressão de que ele acreditava que ao aceitar o Ministério da Cultura, dava importante passo para ocupar outra posição de mando: o Ministério do Planejamento.

Sua maior meta e paixão.

Já Gilberto Freyre se orgulhava de ter recusado vários convites para ocupar posições de mando, ser Ministro da Educação e Cultura.

Mando pode tanto ser comando como influência.

Roberto Marinho e Gilberto Freyre, optaram pela influência. Aquele na mídia. Esse nas ideias.

Vejam esta cena.

Joaquim, me perguntava Dr. Gilberto em seu gabinete, na sede da Fundaj, a casa do senhor de Engenho Francisco Ribeiro Pinto Guimarães, no Recife.

Você conhece esta professora de direito, Esther de Figueiredo Ferraz, nomeada Ministro da Cultura, hoje agora, pelo Figueiredo?

Não, Dr. Gilberto. Respondi

Meu grupo da USP é outro. É o do Celso Lafer, Tércio Sampaio Ferraz. Teoria e Filosofia do Direito. Ela é professora de direito penal.

Intrigado, Dr. Gilberto retrucou.

Mas se ela não é do seu grupo, nem do meu, de que grupo ela é?

Eu não sabia a resposta para pergunta tão autocentrada.

A conversa seguiu para outros assuntos. Mas eu notava que Dr. Gilberto continuava no mesmo assunto. Intrigado. Não estava em nossa conversa. Preocupado.

De repente, seus olhos brilham, ao contrário de Dr. Roberto que se revelava pela voz, Celso Furtado pelos silêncios, Dr. Gilberto se revelava pelos olhos e pelos gestos de suas mãos, que se agitaram.

“Está vendo Joaquim? Naquele sofá ali e apontou para um sofá da sala, o general Figueiredo veio me visitar como candidato a presidente. Eu lhe dei um conselho então. ”

“Coloque no seu ministério um negro e uma mulher. Ele seguiu meu conselho! Exclamou feliz.

Na mesma hora virou-se para Elisa, a secretaria de sempre, e pediu:

“Liga para o Diário de Pernambuco, que eu quero dar uma entrevista sobre a nova ministra”.

Naquela entrevista ele iria se “apropriar’ da indicação de Figueiredo.

Mas atenção. No caso, não se tratava apenas de exercer influência política. Dr. Gilberto era um intelectual pragmático.

A Fundação Joaquim Nabuco, sua meta e paixão, era subordinada ao Ministro da Educação, à Esther de Figueiredo Ferraz.

De outra feita, perguntam a Dr. Tancredo Neves, já candidato à Presidência da República, lá no Recife diante de dezenas de repórteres, Dr. Gilberto ao lado.

Dr. Tancredo, quando o senhor for presidente da República, nomeará Dr. Gilberto para qual ministério?

Marcos Villaça estava lá também.

Dr. Tancredo hesitou. Hesitou. Hesitou. Dr. Gilberto ficou visivelmente ansioso.

De repente, Tancredo disse: Não vou convidá-lo para ministério nenhum.

Dr. Gilberto curvou-se. Acabrunhou-se.

Dr. Gilberto será co-presidente da República!

Viu-se então a euforia de Dr. Gilberto diante de um cargo que não existe!

Dr. Gilberto ficou aliviado. Talvez fosse o cargo que ele queria mesmo.

Dr. Tancredo, conhecedor do positivo e negativo das ambições humanas, ficou aliviado.

Acertara.

Não lhe deu cargo, mas lhe reconheceu influência.

Vejam este outro diálogo revelador do poder de comando de Dr. Roberto.

Na então Churrascaria Rio’s, olhando a belíssima Baia de Guanabara, nós dois almoçando, pergunto a Dr. Roberto.

O senhor que conviveu com todos os presidentes da República, desde Washington Luís até Fernando Henrique, qual mais lhe impressionou?

Dr. Roberto hesita. Não gostava de revelar-se. Insisto.
Provoco. Juscelino?

Jamais!

O que mais me impressionou foi Castelo Branco. Um homem culto, extremamente preparado, e tinha uma visão do Brasil. Um projeto.

Mas Dr. Roberto, se Castelo era tanto assim, por que não fez seu sucessor? Por que foi atropelado pelo General Costa e Silva?

O Castelo, Joaquim, tinha um defeito. Ele não sabia mandar.

Quem tem o poder, tem de exercê-lo de vez em quando, para que os outros não esqueçam de quem de fato o detém.

X. Autoestima quase egocentrismo

No fundo o ativismo de si mesmo é uma espécie de pragmatismo a seu favor.

Ninguém pode ser ativista de si mesmo, sem deter uma grande autoestima. Pois esse é seu melhor utensílio.

Dr. Gilberto, a maior das autoestimas jamais conhecidas, dizia, como disse no programa de Fernando Barbosa Lima, Preto no Branco, que suas relações com Deus eram boas. De igual para igual.

E depois se auto sorria. Molequemente.

Celso, ao contrário, tímido, discreto, fundamentava seu egocentrismo e sua autoestima na certeza de que seus pensamentos e propostas eram racionais.

A parceria com a racionalidade era sua tranquilidade intelectual.

Para Dr. Roberto, sua autoestima era confirmada dia-a-dia na audiência da Globo.

Mas a todos se aplicaria a famosa frase de Guimarães Rosa:

De tão egocêntrico ele se colecionava.

XI. O final. Revisitando a tensão cultural e o esgarçamento social

Volto à pergunta inicial sobre o traço mais importante da cultura contemporânea brasileira.

Relaciono o traço cultural nesta convivência com os três que considero exemplares diante do Brasil: ampliação indutivista, o nacionalismo a sua maneira e o ativismo de si próprio. E termino.

Acompanhem-me nesta cena final.

Um dia fui ao escritório do Boni. Faz décadas. Fui com Ricardo Gribel, então diretor do Banco Real, imenso apoiador da cultura brasileira.

Ricardo queria propor um grande show de comemoração dos cinquenta anos, acho, de Chico, Caetano e Milton Nascimento, no Jardim Botânico, mas com transmissão da Globo, em horário nobre.

Boni conversava, mas não descolava os olhos de cerca de sete televisões a sua frente. Cada uma ligada em canal concorrente.

Ao lado, um computador registrava minuto a minuto a audiência de cada canal.

Ou seja, com o telespectador, o Brasil ampliado pela televisão.

Seu objetivo era simples. Ganhar das concorrentes. Ter cada vez mais milhões de telespectadores. Aumentar a audiência.

Mas, para isso, ele tinha que bater, diria Jota Borges de Caruaru, no sentimento do povo.

Boni logo disse não para mim e Ricardo.

Horário nobre nem pensar. Pode ser depois das onze da noite. E assim mesmo com Chitãozinho e Chororó.

O Brasil sertanejo que se revelava profundo estava emergindo. Era preciso espaço para ele.

Com força até hoje.

Como hoje a periferia emerge.

Vejam agora esta observação de Celso.

No século XX, “o distanciamento entre elite povo será o traço característico do quadro cultural pela modernização dependente”.

Este distanciamento estava em tudo estava embutido.

Na disputa e ao mesmo tempo esforço conjunto de Gilberto e dos sociólogos de matriz marxista ou socialista da USP para incluir classes sociais em nossa intepretação do Brasil.

Nas disputas e ao mesmo tempo esforço conjunto entre planejamento estatal de Celso Furtado e a competição do mercado dos herdeiros de Eugenio Gudin, para vencermos o atraso econômico.

Na definição do conteúdo das grades de programação entre a TV Globo e seus eventuais concorrentes não brasileiros para sintonizar com um Brasil ampliado, inclusive geograficamente.

O descobrimento deste distanciamento, e a inquietação com esse mesmo distanciamento, foi a pauta deles no século XX.

E continua até hoje.

Termino.

Como alerta Luiz Schymura, o grande mérito da Constituição de l988, foi ter ampliado a cidadania através do voto para analfabetos e menores de mais de dezesseis anos.

Este é o traço decisivo da cultura e, então, de hoje.

Não mais metecos.

Os dados são conhecidos dos senhores todos.

Em 1900, votavam apenas homens proprietários. Ou seja, cerca de 2.5% da população.

Em 1940, as mulheres e os não proprietários votavam e o número de eleitores foi a 13.4% da população.

Em 1960, chegamos a aproximadamente 20%.

Mas foi em 1989, com o direito de voto do analfabeto e dos jovens depois de dezesseis anos, consolidado depois na Constituição de 1988, que atingimos mais de 50% dos eleitores. Hoje, representam cerca de 70% da população.

Um novo Brasil heterogêneo, diversificado, desigual, militante, emergente. Antes coberto por formalismos jurídicos e econômicos pelo homogêneo e pelo pretenso igual, está batendo na porta do Brasil. E quer entrar em sua constituição.

Em seu estado democrático de direito.

Está difícil.

A cultura está inquieta.

Vitórias aconteceram. Alfabetização progressiva. Acesso maior às universidades. Controle da inflação. O sistema SUS. Bolsa família. A indignação moral com a corrupção. A liberdade de expressão democratizada.

Temos de que seguir a lição de Gilberto, Celso e Roberto.

Eles nos dão uma direção. Sugerem uma estratégia. Com eles, deu certo.

Em inglês, patrimônio quer dizer landmark. A marca da terra. Aquele marco de pedra que os descobridores, por exemplo, plantaram em Porto Seguro.

Simboliza a posse da terra.

Ao mesmo tempo, o marco diz aos viajantes onde estão e os orienta para onde ir. Diz das terras que virão.

Se vamos em frente, pela direita ou pela esquerda? Se estamos no estrangeiro ou no Brasil?

Gilberto, Celso, e Roberto, são “landmarks” da cultura brasileira.

Patrimônios imateriais diria, com certeza, Cândido Mendes e Marcos Villaça.

Na formação da cultura do século XX e nos seus desdobramentos no século XXI, pode-se ser contra ou favor de cada um.

Concordar ou discordar.

Mas não se pode ignorá-los.