Artigo publicado no Jornal Correio Braziliense, em 03.11.2016 (Acesse aqui)

Carandiru nunca mais. A sentença que o país esperava há vinte anos, não veio. Pode vir. Mas os vinte anos decorridos não virão mais.

O julgamento não terminou. Tecnicamente cabem recursos. Mas vinte anos se passaram. Não voltam. Vão ser mais. Talvez muito mais. O que é grave para a legitimidade do Poder Judiciário e confiança da população no magistrado.

Entidades da sociedade civil, advogados, intelectuais lançaram, em São Paulo, o alerta. A sentença de Carandiru não é acidente isolado. Pediram a intervenção do Conselho Nacional de Justiça.

Esta intervenção pode ter vários rumos. Aqui dois são apresentados. Um não exclui o outro.

Primeiro, o mais visível e de maior atenção pública: se houve ou não falta disciplinar do desembargador Ivo Sartori.

A petição aponta duas possíveis ilegalidades: as relações próximas que o desembargador teria com a corporação policial, e seu posicionamento público no Facebook sobre julgamento ainda em curso. O que é proibido pela Lei Orgânica da Magistratura e pelo Código de Ética aprovado pelo próprio Conselho Nacional de Justiça.

O segundo rumo é tão importante quanto o primeiro, mas não tão visível. Diz respeito à outra competência do CNJ: planejar a administração da justiça. Torná-la mais eficiente. Menos lenta.

O primeiro pergunta se o juiz agiu ou não corretamente. O outro pergunta por que se passaram mais de vinte anos.  É assim mesmo? Isto é natural? A ministra Cármen Lúcia tem sugerido que não.

A questão disciplinar é individual. A questão da lentidão é sistêmica. O primeiro resolve-se com a decisão da Corregedoria e do plenário do Conselho como detentor da palavra final. O segundo resolve-se com proposições de resoluções pela Presidência ou qualquer membro do Conselho.

Um ao outro se complementam.

Antes de prescrever qualquer remédio, o bom médico faz a anamnese do paciente, um diagnóstico. Por que o paciente tem esses sintomas? São episódicos ou permanentes?  Quais seus hábitos? O sintoma neste caso é “vinte anos”.

Como evitá-los? Onde houve abusos de autoridades? Ou é assim mesmo? Em que escaninho do direito processual, teoria e prática, esconde-se e prorroga-se a impunidade, com aparência de legalidade?

O hábito do paciente é a lentidão sistêmica, nacional, repetitiva e permanente. Mas prescrever o quê?

É necessário que se considere Carandiru exemplar estudo de caso, para melhor embasar a atuação planejadora e normativa do CNJ.

O foco não é pesquisar as causas socioeconômicas e políticas da violência. Isto tem sido feito. O foco seria colocar o processo de Carandiru em um microscópio para entender o que houve. Diagnosticar suas patologias. Identificar a demora de vinte anos.

Desafios complexos e multifacetados, quase calamidades públicas, são enfrentados em muitos países, nas Nações Unidas inclusive, por comissões independentes. Integradas por membros de conhecimentos interdisciplinares, e   de reputação, seriedade e experiência nacional e internacional.

No Canadá, foi uma comissão independente quem analisou as falhas do sistema de inteligência que causaram mortes em acidente aéreo de origem terrorista. Na Inglaterra, existe permanente comissão independente sobre a prática do sistema educacional.

Nos Estados Unidos, uma comissão independente investigou mortes causadas no maior vazamento da história da indústria petroleira.

Nada impede que o CNJ crie também comissão independente desta natureza. Reforçaria a legitimidade de suas próprias ações.

Que medidas devem ser propostas ao próprio Conselho Nacional de Justiça, aos legislativos municipais, estaduais e federais, aos governos e tribunais de justiça?

Carandiru é maior do que Carandiru.