Artigo publicado na Revista Consulex, em 2009.

Não há modelo unívoco de separação de Poderes no mundo e muito menos no Brasil. Nossa história constitucional  demonstra que o princípio da separação dos Poderes pode ser incorporado aos textos constitucionais de diferentes maneiras.

A Constituição de 1824 não falava, expressamente, em independência dos Poderes, que não eram nem mesmo três, e sim quatro: Executivo, Legislativo, Judicial e Moderador. Na Constituição de l891, sob a influência do constitucionalismo americano, adotou-se a fórmula dos três Poderes, “harmônicos e independentes entre si”. Em l934, trocou-se o “harmônicos” por “coordenados entre si”. Em l937, percebe-se um retrocesso no caminho rumo à efetiva independência dos Poderes: o Poder Executivo, representado na figura do Presidente Getulio Vargas, encontra-se excessivamente fortalecido se comparado com os outros dois. A Constituição de l946 restabelece a idéia de independência e harmonia entre os Poderes. Em l967/69, embora textualmente – e circunstancialmente – os Poderes fossem três, apenas um, na realidade, detinha o monopólio da estruturação institucional do poder estatal. Através dos atos institucionais o Poder Executivo suplantou, no regime autoritário, a Constituição como e quando quis. A Constituição foi  hidra – ou pirâmide – de duas cabeças.

A conclusão, portanto, é: cada momento histórico entende o princípio da separação dos Poderes diferentemente. Trata-se de um ideal em aberto. Não é um datum. É um constructo.

Na Constituição de 1988, encontra-se disposto, no artigo 2º, que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Estão sendo?

Para que os três Poderes atuem de forma independente e harmônica, ao menos duas condições são necessárias. Em primeiro lugar, um Poder não deve ser capaz de influenciar diretamente as decisões que estejam inseridas no âmbito da competência de qualquer um dos outros dois Poderes. A autonomia decisória, desse modo, é pressuposto para a independência e a harmonia entre os Poderes.

Não basta, porém, que um Poder tenha a capacidade de decidir de forma autônoma as questões submetidas à sua apreciação. Uma atuação independente e harmônica pressupõe, também, que os demais Poderes respeitem e cumpram essas decisões, internalizando os custos (financeiros e políticos) que elas representam em sua própria esfera de atuação. Assim, o segundo requisito da independência e harmonia entre os Poderes é a repartição simétrica dos custos gerados pela atuação estatal, que, em última análise, importa na possibilidade de que um Poder veja implementadas suas próprias decisões pelos outros dois.

Contudo, modelos constitucionais são prescritivos e não descritivos, mesmo quando se pretendem imbuídos de uma racionalidade universalizante. São prescritivos do dever-ser, e não necessariamente descritivos do ser. Enquanto modelos prescritivos, são úteis para guiar a produção legislativa, a elaboração doutrinária e a formulação jurisprudencial em direção a um ideal democrático que pode ou não ser alcançado. São, no entanto, insuficientes para prever as estratégias formais e informais desenvolvidas por cada Poder para superar as dificuldades de fazer com que o poder estatal seja alocado de acordo com suas próprias preferências – ou o mais próximo possível disso.

A doutrina clássica avalia a separação de Poderes em plano estritamente jurídico-formal, isto é, direciona o foco de sua análise apenas para a descrição e a fixação intepretativa das competências decisórias formalmente estabelecidas no texto constitucional para cada Poder. Porém, essa abordagem é insuficiente para se compreender a complexidade das relações entre os Poderes do Estado.

Para se apreciar a efetiva natureza da relação entre os Poderes, há que se verificar não apenas o que está disposto na Constituição – isto é, no plano normativo –, mas também em que medida tais Poderes se orientam no desempenho de suas atividades com base nesses dispositivos constitucionais. Trata-se, portanto, de um exame da efetividade do princípio da separação dos Poderes. Entender a separação pós-88 é unir a autonomia decisória – a competência constitucional que em última instância determina o uso da coerção legítima – e a efetividade da decisão. Isto é, a capacidade da decisão se transformar em ação, em exercício do poder, da força estatal legítima. Aquela sem esta, transforma a Constituição em texto apenas nominal – e, talvez, até mesmo semântico –, diria Löewenstein. Prescrições constitucionais que se desmancham no ar.

Quando unimos autonomia decisória e distribuição simétrica de custos efetivos descobrimos que a natureza das relações entre os Poderes se transformam em verdadeiras arenas competitivas, onde se detemina quem usará,  e como, a coerção legítima do Estado. Compete-se, pelo  menos, em três arenas: a da soberania externa e do uso da força interna; a das políticas públicas; e a da gestão administrativa de  ambas. São arenas interligadas. Ao contrario do que parece, a palavra final não é determinada a priori, como pretende o Poder Judiciário. Quando juntamos autonomia decisória e  efetividade da ação verificamos que existe quase sempre  competição é de resultado incerto.

Importa, pois, investigar as estratégias formais e informais pelas quais um Poder, utilizando de forma aparentemente “constitucionalizável” as competências que lhe foram formalmente atribuídas pelo constituinte de 1988, interfere no exercício das atividades de outro Poder. Impedindo-o de exercer de forma independente as funções designadas pela Constituição. Permitam apenas dois exemplos [1].

Quando o Judiciário estabelece, em decisão final, um débito do Executivo, e a aliança entre Congresso e Executivo transforma este débito – que, em princípio, é pagável de imediato – em precatórios pagáveis em até dez anos, no fundo, se está impondo ao Judiciário um custo não internalizado pelos outros dois Poderes. O resultado, nesse caso, é uma repartição assimétrica dos custos de legitimidade política decorrentes da atuação do Estado. Vale dizer, para proteger o wrong doing do Tesouro, a aliança dos dois outros Poderes retira ou adia a efetividade da decisão judicial. O custo assimétrico transforma o Poder Judiciário em  Poder separado, mas ineficaz, sem força para fazer cumpirir suas decisoes finais. Em uma palavra: em um Poder dependente.

Considere-se, também, o que já foi demonstrado por Kazuo Watanabe [2], que uma das estratégias processuais da Receita Federal é a de ajuizar as ações de cobrança fiscal contra os contribuintes com o objetivo principal de evitar o decurso do prazo prescricional. São ações fiscais temerárias. As conseqüências para a separação dos Poderes e para a consolidação democrática não são triviais. Por um lado, anula-se a presrcição como uma garantia de liberdade da cidadania. Por outro, aumenta-se imensamente a quantidade de ações no Judiciário, provocando engarrafamento e dificultando o seu proprio funcionamento. Dito de outro modo: Impõem-se, ao Judiciário, custos operacionais assimétricos. Transferem-se os custos da ineficiência de um Poder para o outro.

Em suma, para se enetender o princípio da separação dos Poderes pós-88 temos que considerar pelo menos três variáveis: Primeiro, a doutrina constitucional brasileira tem que levar a sério que a nossa história constitucional não tem um modelo de separação unívoco e acumulativo – como parecem ter, por exemplo, os Estados Unidos. Segundo, a natureza das relações entre Poderes é determinada pela interação entre autonomia decisória constitucional e a verificável efetividade da implementação de custos simétricos. Do contrário, refina-se o ideal, mas perde-se o real. Terceiro, quando assim fazemos, a harmonia tende a se traduzir em competição. Que competição é esta?

[1] Ver a respeito, de forma mais detalhada: FALCÃO, Joaquim. Uma Reforma Muito Além do Judiciário. In: Interesse Nacional, ano I, n. I, abril-junho de 2008, pp. 56-64.

[2] Cf. Ministério da Justiça – Secretaria de Reforma do Judiciário. Estudo sobre Execuções Fiscais no Brasil. São Paulo, agosto de 2007.