Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 30 de julho de 2004

No Rio, um ator da televisão doou em testamento seu apartamento para a ABBR, uma das mais sérias entidades privadas sem fins lucrativos de reabilitação de deficientes no país. Neste domingo, milhões de fiéis, católicos e protestantes, doarão o dízimo para suas igrejas, que atuarão através de uma pastoral, centro comunitário ou escola. Neste mês, várias associações de amigos receberão doações de quadros para museus públicos, já que governos não têm recursos para ampliar acervos. Até novembro, candidatos em todo o país contarão, nas campanhas, com apoio voluntário de milhares de associações comunitárias na formulação de propostas para os problemas de seus bairros.

É possível que todas essas ações passem a ser, de agora em diante, fiscalizadas pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério Público.

Chega à Câmara o projeto de lei nº 07/03, do Senado, que dispõe sobre o registro, a fiscalização e o controle das ONGs. Cria-se o Cadastro Nacional de Organizações Não-Governamentais no Ministério da Justiça. Caso aprovado, as ONGs prestarão contas ao Ministério Público dos recursos recebidos, financeiros ou em espécie, públicos ou privados, oriundos de convênios, contratos ou doações.

O objetivo da lei é, textualmente, “o controle das organizações não-governamentais”. Seu autor, o senador César Borges, assim o justifica: “A CPI das ONGs (2001/2002) constatou que, na maioria dos casos, essas entidades atuam legalmente, de boa-fé e prestam bons serviços, mas que o processo de fiscalização das que têm nos recursos públicos expressiva fonte de receita não estaria funcionando a contento (…) os instrumentos de controle do poder público são débeis, díspares e confusos (…) falta um consenso sobre o que seja organização não-governamental”.

O projeto levanta graves questões jurídicas. Para ser constitucional, precisa de mais do que os objetivos do senador. Precisa demonstrar adequação entre meios de controle -cadastro e interferência do MP- e fins desejados -combate à utilização ilegal de recursos públicos. É preciso não impor custos desnecessários às entidades, inviabilizando, na prática, direito constitucional de livre associação. É preciso evidência de que os Estados e municípios são incapazes de controlar o mau uso dos recursos públicos em mãos das ONGs, para que não se cometa, através de um cadastro centralizado, dano ao princípio federativo. Finalmente, é preciso que o poder de fiscalização tenha objetivos, limites e critérios explícitos na legislação. Do contrário, direitos fundamentais serão ameaçados.

O artigo 5º, XVII, da Constituição afirma ser pleno o direito de associação. Os cidadãos podem se reunir e constituir sociedades sem interferência do poder público. Sem pedir autorização ao governo. Sem depender de exigências excessivas que dificultem o exercício do direito. O princípio constitucional é o da liberdade de associação, não é o seu controle.

Se o objetivo é controlar o mau uso dos recursos públicos -que, segundo o senador, é a exceção, e não a regra-, não se justifica fiscalizar todas as entidades e recursos, inclusive doações privadas a entidades privadas. Os meios são claramente desproporcionais aos fins. O projeto transforma a falta de consenso sobre o que é uma ONG num cheque em branco ao Executivo e ao Ministério Público. A vaga expressão “entidade de fins de interesse público” coloca sob a discricionariedade do Executivo a prerrogativa de determinar quem está obrigado ou não a se cadastrar. Não pode ser o Executivo quem define o sujeito do dever. É inconstitucional. A Associação Brasileira da Indústria de Hotéis e a Academia Brasileira de Letras poderão aí ser enquadradas. É competência indelegável do Legislativo.

Existe também duplicidade. As ONGs já estão submetidas a inúmeros controles, como pela Receita Federal, Ministério do Trabalho e, caso recebam recursos governamentais, Tribunal de Contas. O cadastro nacional e a fiscalização obrigatória pelo MP podem ser substituídos, com vantagens, por uma reformulação dos recursos jurídicos e institucionais existentes. Na verdade, não faltam meios de controle. Falta, sim, coordenação interna do governo federal. A burocratização excessiva é clássico mecanismo de violação estatal de direitos dos cidadãos. O projeto duplica desnecessariamente obrigações.

Trata-se de uma crônica da ilegalidade anunciada. Poucos terão condições de cumprir a lei. Uma associação comunitária agrícola no interior da Paraíba estará condenada à ilegalidade se não se registrar em Brasília! Pelo art. 3º, ela, como se fosse a Petrobras, terá de esclarecer ao Ministério da Justiça até “a política de contratação de pessoal”, que certamente não tem! Como diz Magnólia Said, ex-presidente da Abong, nem mesmo multinacionais, que enviam ao exterior milhões de dólares ao ano, devem tantas explicações ao governo.

Governo federal e deputados já demonstram cautela, pois, se aprovado o projeto, sua constitucionalidade será questionada e a ilegalidade aumentará. A culpa mais uma vez será da lei irreal, estatizante e ineficaz. A ilegalidade potencial é a ameaça perfeita, diria Paulo Haus, para uma estratégia de intimidação e medo da sociedade civil e de desperdício de dinheiro público. Nossa história de afirmação da sociedade civil é recente, mas intensa. Sua permanência na direção certa depende da mobilização de todos os cidadãos, ONGs e políticos, dentro e fora do Legislativo.