Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 18 de abril de 2004

Ao fazer 50 anos, um amigo recebeu um conselho de um grande advogado paulista: “Aos 20 anos você pode fazer quase tudo na vida. Mas, depois dos 50, só se pode fazer uma coisa bem feita. Não mais do que uma”. “Qual?” -logo perguntou. A resposta foi pronta: “Escolher! Temos que nos especializar em escolher bem. Ter todo o cuidado. Não há mais tempo nem saúde para escolher errado. Para ler o livro enfadonho, ter o amigo incerto, participar do projeto equivocado ou comer a feijoada insossa. Daí em diante, mais do que nunca, viver é saber escolher”. Ou seja, o desperdício passa a pesar.

Esse conselho ilumina um pouco a situação atual do Supremo Tribunal Federal -que, aliás, tem bem mais do que 50 anos. Não é razoável o Supremo julgar mais de 100 mil casos ao ano. É desperdício de tempo, senso de justiça e saúde financeira. Todos esses casos são mesmo fundamentais para a vida da nacional?

A origem dessa multidão de processos são os recursos extraordinários. Levam a julgamento no STF lesões individuais, e não coletivas. Sua imensa maioria é composta por dois tipos de casos: casos repetitivos, que fazem com que o Supremo julgue milhares de vezes a mesma tese, e casos cuja matéria é claramente irrelevante. Repetição mais irrelevância somam milhares de processos e milhões de reais do Orçamento público.

Para os casos repetitivos, a reforma do Judiciário, em votação final no Senado, propõe a súmula vinculante. Já para os casos irrelevantes, o senador José Jorge (PFL-PE), relator da emenda da reforma do Judiciário, encaminhou inovadora solução. O Supremo poderia deixar de julgar um recurso extraordinário quando dois terços de seus membros considerassem que o recurso não detém a “repercussão geral” necessária.

Em recente reportagem, a Folha revelou uma série de casos julgados pelo STF. Dois exemplos: uma professora do Guarujá (SP) processa uma lavanderia pela perda de uma jaqueta. Inconformada com a decisão que a condenava a pagar indenização no valor de R$ 550, a lavanderia recorreu ao STF. No Rio de Janeiro, o aparelho de ar condicionado de um casal estourou enquanto o técnico o reinstalava. Condenada a pagar pouco menos de R$ 4.000 por danos morais e materiais, a loja de assistência técnica interpôs recurso extraordinário no tribunal maior do país.

São apenas dois exemplos. Mas de situação freqüente: o STF ser obrigado a apreciar questões sem expressivo valor econômico ou jurídico para o país. Claro que as partes desses casos têm direito à aplicação correta e imparcial da lei. Não é disso que se trata. Trata-se de reconhecer que o direito já estaria plenamente assegurado com o juízo do tribunal estadual. O Superior Tribunal de Justiça julgar já é demais. O Supremo então é o excesso do excesso. A proposta do senador José Jorge preserva o tempo do STF para assuntos mais relevantes, sem prejudicar o acesso à justiça previsto na Constituição.

Alguns senadores contra-argumentam que não julgar seria denegar justiça. Acredito que não. Quando o recurso chega ao Supremo, na maioria dos casos já passou por pelo menos três julgamentos. Mesmo quando o recurso é interposto a partir da segunda instância, já terá sido objeto de dois juízos diferentes antes de chegar ao STF. É mais do que suficiente para um julgamento definitivo imparcial.

Teme-se também que não julgar seria conferir grande poder ao Supremo, que já o teria em demasia. É difícil aceitar esse argumento. O Supremo tem história. O Brasil, o povo brasileiro, nunca acusou o Supremo de excesso de poder. Nem mesmo o Legislativo ou o Executivo. Um ou outro político, governante, ou escritório de advocacia reclama, conjunturalmente. É natural. Mas, no correr de nossa história, reclama-se justamente do contrário, do pouco agir. De ausência, mais do que de excesso. Ninguém de bom senso poderá dizer que a marca do Supremo é o abuso de poder. Ao contrário, tem se pautado por uma saudável e democrática cautela. No dia-a-dia, o cidadão e a empresa sofrem muito mais do excesso de poder do prefeito ou do policial do que do STF.

O desafio será determinar o que significa “repercussão geral”. Muitos alegam ser expressão excessivamente indeterminada. E é mesmo. Tem que ser assim. Nos Estados Unidos, o Supremo usa outra expressão, como lembra Ângela Santa Cruz: imperativa importância pública. Tão vaga quanto. Importa é que, aqui, exige-se o voto de pelo menos oito ministros, o que por si só evita qualquer abuso de poder. Mais ainda, na legislação infraconstitucional ou na jurisprudência do próprio Supremo, poder-se-ia estabelecer critérios mais precisos para determinar de antemão alguns casos de repercussão geral. Casos de interesse prioritário do governo federal ou de expressiva conseqüência econômica poderiam ser desde logo considerados de repercussão geral.

Na verdade, existe uma correlação entre liberdade, poder e escolha. Quem não tem escolha não tem liberdade. Quem não tem liberdade não pode exercer o poder. Quem passa a exercê-lo de fato é quem lhe deixou sem escolha. Você apenas legitima escolha já feita. No xadrez, a partida acaba quando o rei já não dispõe de opções. Não pode mais escolher o seu caminho.

Quinze anos depois da Constituição de 1988, o melhor dos esforços do Supremo não lhe permite julgar todos os processos que lhe batem à porta. Ao ter que julgar o que não é necessariamente relevante, deixa de julgar o verdadeiramente importante. Prejudica o país. É hora de aperfeiçoar a Constituição, com base na experiência.