Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 16 de julho de 2003

Quebrar ou não quebrar os contratos, eis a questão nesse episódio do reajuste dos preços de telefonia, certo? Não; errado. Não é esta a questão, por mais que muitos políticos assim o queiram e por mais que a imprensa muita vez assim o simplifique. No Estado democrático de Direito a questão é outra. Qual é? Para entendê-la é preciso antes conhecer alguns fatos. A eles:

1) O ofício que o ministro Miro Teixeira enviou ao presidente da Anatel, Luiz Guilherme Schymura, não foi uma ordem contra o reajuste. Foi a comunicação de uma discordância. Discordância pode, ordem não. A agência é autônoma diante do Poder Executivo. Seria ilegal, seria ferir o Estado de Direito. Aliás, o ofício começa com a seguinte expressão: “Incumbiu-me o Excelentíssimo Senhor Presidente da República de lhe comunicar a discordância…”.

2) O presidente Luiz Guilherme Schymura leu o ofício, deve ter ponderado, mas, seguindo a orientação jurídica de sua agência, determinou os reajustes pelo IGP-DI, conforme os contratos. Entendeu que o contrato não foi firmado pelo governo Fernando Henrique, mas pelo governo brasileiro. Ao orientar, em vez de mandar, o governo Lula respeitou os contratos. Ao não aceitar pressões e ao não se render aos custos de uma medida altamente impopular, Schymura cumpriu a lei. Praticou a autonomia das agências reguladoras. É um marco para a vida (ou sobrevida) das agências.

3. Insatisfeito com a decisão da Anatel, o secretário de Justiça do Rio de Janeiro, Sérgio Zveiter, não mandou fiscais intimidarem as empresas. Não criou um sistema alternativo de telefonia. Não desancou a Anatel nem culpou o FMI. Fez mais: ajuizou no Judiciário, contra o reajuste. Começou a surgir uma nova interpretação dos contratos. O aumento de preços teria de se sujeitar ao princípio da modicidade, de preços módicos, conforme reza a lei. Conseguiu uma liminar que suspendeu o aumento no Rio. Essa atitude se alastrou por quase todos os Estados. No Ceará, o juiz Jorge Luís Barreto entendeu que, em vez do IGP-DI, dever-se-ia aplicar o IPCA.

4. Finalmente, o presidente Nilson Naves, do STJ, diante da proliferação de liminares que se conflitam e inviabilizam qualquer ação, quer do governo, quer das empresas, determinou que se siga, nacionalmente, apenas uma: a decisão do juiz do Ceará. Desta decisão cabe recurso. A incerteza ainda vai continuar por algum tempo, até a decisão final do Poder Judiciário.

Existe hoje uma realidade econômica e política que estimula a negociação, e não a quebra de contratos

Numa democracia, indivíduos, empresas e governos divergem e conflitam. É saudável e inevitável. O importante é saber como se resolvem as divergências. Importa é que as instituições cumpram suas funções legais, mesmo que diferentes e conflitantes, e que a solução dos conflitos respeite o inciso LIV do art. 5º da Constituição -respeitem o devido processo legal.

A questão fundamental deixou de ser quebrar ou não quebrar contratos e passou a ser como executar contratos diante de interpretações conflitantes, respeitando-se o devido processo legal.
Na disputa pela interpretação vencedora, todos correm riscos. As empresas de telefonia, quando assinaram os contratos, sabiam que teríamos eleições, conheciam nossos juízes e tribunais. Devem ter avaliado esses riscos. Confiaram em Lula e nos tribunais. O ministro das Comunicações possivelmente sabe que uma defesa apaixonada dos interesses imediatos de seus eleitores pode lhe dificultar a tarefa de médio prazo: mais investimentos e tecnologia para seu setor. Além de transferir o ônus da impopularidade para o resto do governo, especialmente para o ministro Palocci.

Os juízes e tribunais, por sua vez, têm de respeitar limites ao interpretar. Leis e contratos são seus referenciais maiores. Se a interpretação for explicitamente política, em favor de uma das partes, o Judiciário perde em credibilidade diante de todas as partes. Perde legitimidade diante dos cidadãos. A função de longo prazo do presidente da Anatel é consolidar a autonomia de sua agência, a dos tribunais é praticar a neutralidade.

A avaliação dos riscos inerentes à atual incerteza jurídica é fundamental para que se forjem soluções. O presidente do STJ, por exemplo, optou por uma cearense decisão salomônica. Nem tão pouco como o governo gostaria, nem tanto quanto as empresas pretendiam. Outros caminhos em busca da modicidade começam também a ser imaginados. Por exemplo, o reajuste não faz subir apenas o preço dos serviços de telefonia, faz subir também a arrecadação do ICMS dos Estados. Esta é atrelada àquele. Os governadores podem, sem perda da atual arrecadação, abrir mão e não elevar muito o ICMS. O beneficiário seria o consumidor.

Na verdade, existe hoje uma realidade econômica e política que estimula a negociação, e não a quebra de contratos. Os serviços de telefonia são um bem popular inestimável. O celular é instrumento vital da cidadania econômica para as populações de menor renda. Sem celular, quase que não se é. Isso se obteve com a privatização; governo nenhum o faria sozinho. Preservar essa conquista da cidadania implica preservar também empresas de telefonia bem capitalizadas. Um sem o outro inexiste. Para tanto, é preciso que as instituições da democracia -ministérios, agências, juízes, empresas e consumidores-funcionem. Estão funcionando. Pode levar algum tempo. Alguns interesses vão ceder. Dificilmente haverá um grande vencedor. Mas ainda é nossa melhor alternativa.