Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 22 de dezembro de 2002

“Devem os contratos ser respeitados, independentemente de suas repercussões sociais, ou o juiz tem um papel social a cumprir e a busca da justiça social justifica decisões que violem os contratos?”

Amaury de Souza e Bolívar Lamounier fizeram esta pergunta às elites brasileiras, em recente e tradicional pesquisa realizada pelo Idesp. A resposta surpreendeu. Menos da metade de nossa elite (48%) concordou que os contratos devam ser respeitados independentemente de suas repercussões sociais.

A surpresa se desfaz quando especificamos a resposta de cada grupo que compõe nossa elite. Somente a grande maioria dos empresários (72%) e do Poder Executivo (77%) e a pequena maioria da imprensa (52%) querem contratos cumpridos doa a quem doer. Os demais, não necessariamente: o Legislativo, o Judiciário, líderes da pequena e média empresa, sindicatos, ONGs e intelectuais.

Buscar justiça social e respeitar contratos não são, necessariamente, objetivos incompatíveis. Fácil entender. Parafraseando importante jurista paulista, leis e contratos não existem sozinhos, soltos no ar. Inexiste significante sem significado. Existem, sim, múltiplas interpretações de leis e contratos, isto é, das normas jurídicas em geral. Sem interpretação, contrato ou lei é letra morta. Parte sem vida. Forma sem conteúdo. Expectativa, e não realidade.

O sopro da vida, o sangue que corre, o ar que se respira é a interpretação. Por isso se diz, com razão, que buscar justiça social pode ser apenas um meio de interpretar contratos diferente do que uma das partes pretende.

Os fundamentalistas de mercado, no dizer de Eric Hobsbawm, exigiram que os candidatos a presidente declarassem em público que cumpririam contratos a qualquer preço. Beijassem a cruz, no dizer de Fernando Henrique. Exigência poderosa eleitoralmente, mas inócua juridicamente. Palavra de ordem, de efeito muito mais psicológico do que legal. Pois o que sempre estará em jogo são as múltiplas interpretações dos contratos. Qual a que prevalecerá?

E, no entanto, a busca da justiça social pode, às vezes, significar violação de contratos. Para que isso não ocorra, é necessário que esteja fundamentada em normas jurídicas válidas e seja efetivada por autoridades competentes dentro do devido processo legal. Quando assim ocorre, inexiste violação. Os exemplos são muitos, inclusive internacionais.

A defesa de seu programa contra a Aids pelo Brasil foi interpretada pelos Estados Unidos e pelos laboratórios como uma quebra do direito de patente. Uma violação de direitos. Ledo engano. Havia -e há- outra norma internacional que justifica e legitima uma interpretação em favor da justiça social. Dizia o artigo 31 do Trips (Acordo sobre Aspectos Comerciais dos Direitos de Propriedade Intelectual – OMC) que um país pode autorizar outro uso da patente em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência, ou ainda em casos de uso público não-comercial.

Não houve, pois, violação de direitos. Apenas a nova interpretação, “socially-oriented”, que limita o direito de patentes tendo em vista valores sociais relevantes, ganhou da antiga interpretação, “capital-oriented”, que pretendia o direito de patentes como direito absoluto. Nenhuma das duas são violações de contrato. Ambas são legítimas e legais. No confronto das interpretações, pulsa a disputa recôndita pelo poder.

Assim, também, inexiste violação de contratos se existe previsão constitucional para não os cumprir. O presidente Bill Clinton, por exemplo, assinou o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, mas o Congresso norte-americano o desautorizou. Não referendou sua assinatura.

Também aqui não houve violação do compromisso firmado pelo presidente dos Estados Unidos. O Congresso americano tem constitucionalmente o direito dessa recusa. Quem com Bill Clinton negociou sabia disso. Assim como quem com o Brasil negocia deve conhecer nossa Constituição e deve saber que nosso Congresso e nosso Judiciário poderão, em relação aos atos do Poder Executivo, ter interpretações diferentes. O que é natural dentro da separação dos Poderes e da democracia.

Ou seja, é possível divergência entre os Poderes, embora não desejável, pois cria insegurança. Considere-se, por exemplo, que nossa Constituição, no artigo 3º, determina que erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais é um princípio estruturador da República. Nestes novos tempos, esse princípio deve ganhar mais força interpretativa e relevância jurídica.

Considere-se também que a pesquisa de Bolívar e Amaury é muito clara: nossos juízes estão cada vez mais conscientes de seu papel social e de seu correlato poder interpretativo. Apenas 7% de nosso Judiciário acredita que os contratos devam ser respeitados independentemente de suas repercussões sociais. Posição radicalmente oposta à dos grandes empresários e do próprio Poder Executivo.

Evidentemente, não se trata de defender que Congresso e Judiciário interpretem amanhã, diferentemente do Poder Executivo, contratos ontem firmados. Nacionais ou internacionais. Trata-se de constatar apenas que essa pode vir a ser uma tendência legal e legítima. Se a divergência é salutar para o país, econômica ou politicamente, é outra questão.

Constata-se também que, como parece sugerir a pesquisa, a palavra de ordem dos fundamentalistas do mercado – respeitar quaisquer contratos a qualquer preço – não representa a opinião de nossa elite considerada em suas múltiplas categorias. Diríamos até que é posição minoritária. Além de não ser juridicamente consistente com o Estado de Direito.