Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, no dia 26 de outubro de 2001.

Pretendam ou não, sentenças, quando decidem conflitos econômicos, têm conseqüências para além das partes. Influem no dia-a-dia da economia brasileira. Sobretudo quando são sentenças de juízes federais. Analisar o que pensam esses juízes sobre política econômica e identificar a tendência das sentenças significa descobrir outra política econômica. Algumas vezes sintonizada com a do Executivo e do Legislativo; outras vezes, não.

A politização econômica das sentenças parece inevitável na democracia. Mais de 40% dos juízes, por exemplo, acreditam que agora têm de resolver questões de caráter essencialmente político que deveriam ser resolvidas pelos outros Poderes.

E mais: ao contrário do que o Brasil parece pensar, os juízes não são contra as privatizações de bancos e indústrias. Ou seja, o festival de liminares às vésperas de cada privatização seria um fenômeno isolado, fruto de bem-sucedida estratégia de advogados ativistas, que, com habilidade, unem a guerrilha político-judicial ao respaldo da mídia. E os juízes acreditam que, em matéria de meio ambiente e de direito do consumidor, as sentenças são mais frequentemente baseadas nas visões políticas do juiz do que na leitura rigorosa da lei.

Todos esses dados são da excelente pesquisa “O Judiciário e a Economia na Visão dos Magistrados”, de Armando Castelar Pinheiro e do Idesp. A pesquisa mostra que os juízes só discordam mesmo é da privatização da infra-estrutura. Além de serem claramente a favor da participação do capital estrangeiro na economia. Mas atenção: o fato de os juízes, como cidadãos, terem preferências econômicas, não implica que as sentenças sejam necessariamente usadas como armas. Mais de 80% dos juízes acreditam que a economia brasileira deverá depender cada vez mais de um Judiciário ágil, acessível, previsível e imparcial.

Sublinho a crença num Judiciário imparcial, porque acredito que a maioria dos juízes hesita em contaminar seu exercício profissional com suas preferências de cidadão. Ou seja, a politização econômica das sentenças seria um fenômeno inevitável. Mas o ativismo político e econômico dos juízes, não.

Cético diante da possibilidade de evitar a contaminação, baseado provavelmente num saber de experiência, Gilmar Mendes, advogado-geral da União, com a franqueza que lhe é peculiar, abriu o Encontro da Associação dos Juízes Federais, em Campos de Jordão, sem meias palavras. Diante de mais de 300 juízes, defendeu a tese de que os magistrados são co-responsáveis pela política econômica ao confirmarem ou não, por suas sentenças, as decisões do governo. Co-responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso, tal como um ministro da Fazenda ou um líder da oposição.

Os juízes ouviram com atenção. E calaram-se, talvez com preocupação.

Na democracia, dificilmente os juízes podem, como ocorreu no autoritarismo, lavar as mãos nas neutras águas de um formalismo legal imaginário. Sobretudo quando as sentenças tomam posições diante da discricionariedade político-administrativa do Executivo. A interpretação judicial, pretenda-se ou não, há que ser um ato politicamente responsável. Sem o que, aliás, inexiste Poder Judiciário. Existe só “judiciário”.

Bem dentro da concepção de sentença como ato político responsável, os juízes acham que, em matérias comercial, de crédito e de inquilinato, os contratos devem ser rigorosamente respeitados. Mas, em matérias trabalhista e de direitos do consumidor, previdenciário e ambiental, a busca da justiça social às vezes justifica decisões que violem os contratos. Ou seja, a independência do Judiciário residiria na sintonia responsável, dentro dos limites constitucionais, com o ideal de justiça social da sociedade. Muito mais do que na existência ou não de um Conselho Nacional da Magistratura, por exemplo.

Se assim é, se os juízes formulam direta ou indiretamente uma política econômica, o próximo passo é claro: Executivo e Legislativo deveriam ter informações sistematizadas das tendências judiciais. Trata-se de matéria-prima indispensável para a formulação da política econômica do governo. É informação vital, que não se consegue no dia-a-dia dos tribunais nem na conversa privilegiada com o ministro do Supremo. Exige distanciamento tático, pesquisa empírica e reflexão institucional.

Ao fazer novas leis, Executivo e Legislativo deveriam considerar essas tendências. Não só para cumprir o princípio constitucional de harmonia entre os Poderes, mas também porque a palavra final será sempre, através de seus juízes, do Judiciário.