Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 30 de agosto de 2001

O slogan de nossos ecologistas nas últimas décadas foi justamente o contrário do título deste artigo: “pense globalmente e aja localmente”.

Slogan importado. O global moldaria o local. Quando, por exemplo, o Brasil determinasse suas ações na Amazônia, deveria considerar não apenas interesses locais e nacionais, mas prioritariamente o interesse global: o efeito estufa, no caso. Esse slogan está em crise.

Quando George W. Bush se recusa a assinar o Protocolo de Kyoto e esvazia uma política global da defesa do meio ambiente em nome da indústria norte-americana, ele não pensa globalmente e age localmente. Faz justamente o contrário. Pensa localmente (protege sua indústria) e age globalmente (se recusa a assinar um protocolo de interesse mundial). A prioridade ao local, isto é, ao nacional, é a regra de ouro da política internacional norte-americana. Não se limita ao meio ambiente. Quando, para proteger sua indústria de armamentos, Bush não aceita limites à venda de armas, ele aplica a mesma regra.

Atitude similar do governo brasileiro seria logo estigmatizada de nacionalista, retrógrada, coisa de país emergente. Por isso Bresser Pereira sempre ficou intrigado pelo fato de não existir em países como Reino Unido, Itália ou EUA a discussão sobre o nacionalismo. Não se vê um italiano nacionalista e outro não. A conclusão de Bresser é simples e óbvia: “Lá ninguém é nacionalista, porque todos são!” Ou seja, todos pensam localmente antes de pensar globalmente. A elite sobretudo.

Tanto Clinton quanto Bush pensam localmente antes de agir globalmente. A maneira como expressam tal atitude é que mudou. A nova maneira de Bush pode provocar duas conseqüências importantes: uma para o fundamento da liderança mundial dos EUA, outra para suas relações com o Brasil. Vejamos.

Um líder, seja uma pessoa, um país ou uma empresa, é tanto mais legítimo quanto mais se identifiquem seu interesse particular e o interesse geral, de todos. O exemplo clássico da história do Brasil foi a pressão britânica para acabar com o tráfico negreiro. Londres defendia um direito humano e também seus interesses comerciais, prejudicados pelo menor preço do açúcar brasileiro. Foi o que Clinton fez em Seattle, ao defender os interesses comerciais americanos por meio do ataque ao trabalho infantil.

Bush não faz isso. Não mais reveste os interesses norte-americanos do manto diáfano dos interesses globais. Bush é explícito. Assim muda o fundamento da liderança dos EUA. Não há mais a sintonia entre interesses locais e interesses globais. São conflitantes, não adianta esconder. Os EUA são líderes porque dominam o mercado financeiro e as armas nucleares. Ponto final. É sem dúvida atitude mais realista e arriscada. Abre espaço para que Europa e China, por exemplo, defendam os legítimos e órfãos interesses globalizados.

Para as relações entre Brasil e EUA, Bush é exemplo a seguir. Se o Brasil não pensar antes no Brasil e depois agir globalmente, dificilmente deixará de ser emergente. Quando falamos em Brasil, não é só governo. Falamos governo, elites, mídia, ONGs, intelectuais, sindicatos etc. O ministro Serra percebeu esse novo contexto. O respeito a patentes de remédios não era necessariamente interesse global ou brasileiro, como parecia. Quando o Brasil pensou localmente e depois agiu globalmente, a mágica se desfez. Liderou. O interesse brasileiro e global respeita o direito de marcas e patentes. Mas não como absoluto, capaz de se impor ao direito à vida. Há limites.

Pensar antes globalmente pode poluir os interesses do Brasil com interesses concorrentes revestidos do manto global. A maturidade política de um país se mede por sua capacidade de separar o joio do trigo. Não faz muito tempo que alguns – o governo inclusive- procuraram estigmatizar Ciro Gomes como caloteiro: se eleito, não pagaria a dívida externa. Na verdade Ciro apenas propunha nova atitude, mais soberana, na mesa de negociação.

Propunha mobilizar o país para a busca de saídas legítimas e legais na negociação da dívida externa. Tal como as que Serra encontrou para a saúde. Propunha invenção e debate, não calote. Nada mais antibrasileiro do que tentar evitar, em nome de interesses eleitorais, que o país inove globalmente.

Uma nova atitude nas relações internacionais já é um dos principais itens da campanha eleitoral. Pouco adianta estigmatizar Ciro ou Serra como nacionalistas ou caloteiros. Muito adiantaria inventar novas estratégias na concorrência global. Como nos ensina Bush: pensemos mais localmente e então ajamos globalmente. Ou melhor: o que for bom para o Brasil, há de o ser para o mundo.