Publicado originalmente na Folha de São Paulo, no dia 10 de março de 2001

O ministro Costa Leite, presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), declarou recentemente que, se o governo, os empresários e os trabalhadores não chegarem a um acordo sobre quem paga a correção do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), o Judiciário sofrerá uma avalanche de processos. Seria o caos, acrescento eu. Essa declaração pode ser entendida como mera constatação de uma realidade ou como um estímulo à negociação. Como constatação da realidade, é verdadeira.

Tem razão o ministro. A interpretação e a prática do Judiciário sobre o nosso CPC (Código de Processo Civil) obrigam quem quiser receber a correção a que tem direito a entrar com ação individual ou coletiva. Serão milhares de ações. Milhões de honorários advocatícios. Talvez uma década até a sentença final. E essa avalanche afetará mais ainda a imagem que o trabalhador tem do Judiciário: em vez de garantidor de direitos, é o institucionalizador da esperança que não se concretiza.

A declaração do ministro pode também ser entendida como um estímulo à negociação entre governo, empresários e trabalhadores. O que, à primeira vista, seria positivo. O país necessita de instâncias alternativas para resolver pacificamente os conflitos. O Judiciário sozinho não dá conta. A negociação social seria uma alternativa, já praticada em muitos países. Resta saber se, nesse caso do FGTS, seria saudável para o Brasil.

A negociação só é saudável quando, diante da incerteza sobre qual o direito a prevalecer, as partes em conflito avaliam os custos e os benefícios de uma disputa. E cedem. A incerteza dos direitos os coloca em pé de igualdade. Cedem hoje, porque desconhecem o amanhã. Não é o caso.

A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) foi clara e protege os trabalhadores. O que estimula a negociação não é uma incerteza de direitos. Os trabalhadores estão sendo obrigados a negociar direitos constitucionalmente assegurados. O que induz a negociação é uma patologia do funcionamento do Poder Judiciário.

Como diz Costa Leite, é a ameaça da “inviabilização dos serviços judiciais”.
Um dos maiores advogados do Rio de Janeiro costuma lembrar a seus clientes que muitas vezes é melhor um fim horroroso do que um horror sem fim. A mensagem que é passada aos trabalhadores parece ser essa: ter direitos assegurados pelo STF, no Brasil, é um fim horroroso ou um horror sem fim.

Não há democracia que resista.

O caso do FGTS é talvez o mais politicamente explosivo da atualidade. Atinge a imagem do Judiciário e a do governo. São milhões de trabalhadores com a Constituição ao lado. Se encurralados diante da ingrata alternativa, só terão uma saída: as eleições presidenciais. A proposta governamental de carência é perigosa. O seu candidato seria culpado por não pagar essa decisão judicial.

O Judiciário pode tomar duas atitudes: constata e espera ou constata e age.
A primeira: constata que os próprios juízes impedem a implementação de direitos que eles mesmos reconhecem e espera que um dia o Legislativo mude as leis processuais. A justificativa da espera é a crença em que a mudança do CPC é uma matéria exclusiva do Poder Legislativo e que o Judiciário nada pode fazer. O resultado dessa espera é só um: o Judiciário abdica de fazer justiça.

A segunda: por meio de seus líderes e órgãos mais representativos, o Judiciário inicia, unido, uma vigorosa campanha política para obter uma rápida reforma. A tripartição dos Poderes, que tenta neutralizar politicamente o Judiciário, é vitalmente democrática quando limitada à interpretação das leis. Quando impede o Judiciário de agir e de buscar novas leis, ela é mortalmente democrática. É suicida.

O país está politicamente maduro para apoiar um Judiciário que, unido, batalhe por novas leis processuais que lhe assegurem a sobrevivência democrática. As lideranças dos trabalhadores devem estar percebendo que a luta por um Judiciário eficiente é tão importante quanto uma greve ou um aumento de salário. Talvez até mais importante.

Os tribunais poderiam iniciar, enquanto não se obtém a nova legislação, um sistemático processo de inovação, de busca de novos caminhos. Isso dentro da discricionariedade interpretativa e da autonomia administrativa que a Constituição lhes assegura. A reforma do Judiciário não é apenas uma reforma legal, é também administrativa. Apesar dos avanços, a imagem que o povo tem do Judiciário ainda é de ineficiência. Talvez não seja assim amanhã. Vai depender dos próprios juízes: inovando nos autos e sendo ativos no Congresso.