Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 19 de janeiro de 2001.

Tempos de novos prefeitos, novas políticas e também de novas leis urbanas. Se tudo der certo, o Congresso vai, neste ano, aprovar logo uma nova lei, já denominada de Estatuto da Cidade. Interfere com a vida de cada um de nós. Interfere com a propriedade. Democratiza a decisão urbana. Vai revolucionar tudo. A cidade não estará mais entregue só aos prefeitos, às Câmaras Municipais e às empresas imobiliárias, como na polêmica Lei dos Apart-hotéis, no Rio de Janeiro, por exemplo.

O vizinho, o bairro e a comunidade terão voz ativa. Já existe um acordo de lideranças. Uniu todos os partidos. O projeto está para votação final. Que projeto é esse? Trata-se de antigo e quase esquecido anteprojeto do saudoso senador Pompeu de Souza, do Distrito Federal, que o deputado federal Ronaldo Cezar Coelho (PSDB-RJ) ressuscitou, fundiu com outros projetos e comandou o encaminhamento. Está pronto para votação final. Seu tema é a gestão democrática da cidade. Seu mérito é instrumentalizar e legalizar esse ideal.

A partir da obrigatoriedade de um plano diretor, o projeto estabelece novas diretrizes e procedimentos. Por exemplo: determina que se evite a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão de infra-estrutura correspondente. Ou seja, não mais shopping centers ou megastores que tumultuam o tráfego no caminho de casa ou do escritório.

A decisão da licença é, hoje, discricionária. Depende do prefeito ou do governador. Daí as pressões, veladas em muitas das vezes, em cima da autoridade. Como ocorreu com o shopping que se queria construir no campo do Flamengo, na região da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Agora não mais. Se o shopping tumultua o tráfego, licença não há. Mas, se o shopping quiser fazer por conta própria a infra-estrutura, ótimo, nada impede. Evita-se a prática de privatizar os benefícios provocados pelo tráfego e de “publicizar” o caos.

O mais importante, porém, é que o anteprojeto dá transparência às decisões urbanas que afetam a população. Determina, por exemplo, a necessidade de audiências públicas nos processos de implantação de empreendimentos ou de atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, sobre o conforto e sobre a segurança da população.

As audiências vão enriquecer o trabalho da imprensa. Bobbio já dizia que o segredo é a arma das ditaduras e a publicidade é a arma da democracia.

Deverão ser ouvidos não apenas o poder público municipal, o Ministério Público e as empresas privadas interessadas, mas também o bairro e as comunidades afetadas, suas associações, suas ONGs e até mesmo o vizinho da obra.

Nem sempre o conceito de felicidade urbana é igual para todos. Vejam essa história. Em Nova York, o tombamento ou a reforma de um prédio histórico exige audiência pública. O que não ocorre ainda, infelizmente, no Brasil. Assisti a uma audiência. Tratava-se da construção em área tombada em Queens, salvo engano. O projeto era de um dos mais respeitados arquitetos americanos, incorporando a melhor e a mais moderna teoria de restauração arquitetônica.

Uma velhinha moradora pediu a palavra. Perguntou ao arquiteto se ele nascera lá. A resposta foi não. Se ele havia morado lá. A resposta também foi não. Se ele tinha ido muitas vezes ao bairro e permanecido por um bom tempo antes de fazer o projeto. A resposta do arquiteto, já inquieto, mais uma vez foi não.

A velhinha então virou-se, olhou para o comitê e disse em voz quase baixa: “Agora sei por que motivo o senhor fez esse projeto. O senhor não conviveu conosco. Nosso bairro é alegre. Seu projeto é triste”. Virou as costas, ajeitou a saia e sentou-se. Esse argumento _”seu projeto é triste”_ foi um grito solto no ar. O comitê ficou surpreso e silencioso. Achou depois que a velhinha tinha razão. Recusou o projeto.

O Estatuto da Cidade estimula também o uso de plebiscitos e de referendos em nível municipal. Esses dois instrumentos constitucionais de gestão democrática estão subutilizados. Em geral usados apenas na criação de novos municípios. As comunidades suíças os usam bastante, sobretudo para preservar o comércio e o emprego locais. Basta a ameaça de o referendo negar a licença de funcionamento para que os donos de novos shoppings proponham de saída a utilização preferencial de emprego de mão-de-obra local e beneficiar produtos e comerciantes locais.

O deputado Ronaldo Cezar Coelho e seus colegas Inácio Arruda (PC do B-CE) e Inaldo Leitão (PSDB-PB), que lideram a votação desse projeto, temem, no entanto, que as empresas imobiliárias tentem uma derradeira oposição.

No caso, a pior de todas, mas talvez a mais freqüente: a oposição paralisante. A que não entra no mérito do projeto, mas que utiliza o intrincado processo de votação legislativa para, por meio de requerimentos, requerimentos e requerimentos, simplesmente adiar, adiar, adiar, adiar… Os novos prefeitos precisam estar atentos.