Publicado originalmente na Folha de São Paulo, no dia 01 de novembro de 2000.

O que acontece quando um chefe de família, uma empresa, ou um governo tem mais dívidas do que capacidade ou dinheiro para pagar? É que o parece estar acontecendo agora, quando o Judiciário manda devolver aos trabalhadores a correção de 68,9% que lhes tiraram do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). E o Executivo diz que não tem como pagar. Ao contrário do que parece, as soluções são muitas. Pelo menos quatro. Vamos a elas.

Primeira: o credor pode estabelecer prioridades. Pagar uns, e outros não. Pagar logo o que é mais urgente e aos credores mais poderosos. Não pagar os que não têm força para executá-lo. Segunda solução: pode obter um empréstimo, endividar-se. Nenhuma destas soluções, no entanto, são de agrado da atual política monetária do governo.

O sistema financeiro, como credor privilegiado, foi eleito prioridade intocável. Nem pretende, o governo, endividar-se mais. Ao contrário. Novas dívidas, só em crise cambial. E a pulso.

Terceira solução: o credor pode tentar adiar os pagamentos. “Empurrar com a barriga”, diz o povo. “Procrastinar”, diz o erudito. Por artifícios velados – uns mais, outros menos intencionais. Melhor ainda, se for possível, colocar a culpa do atraso nos outros, de preferência no próprio credor. Infelizmente, não é raro, os governos optarem por esse caminho.

Adiam os direitos dos trabalhadores e dos contribuintes por meio do Judiciário. São ações, recursos, instâncias, apelações, embargos, etc. Usa-se o Judiciário para obter uma não-decisão. Trata-se da judicialização do déficit público. O custo da injustiça. É fácil entender sua lógica recôndita.

A judicialização do déficit implica em honorários de advogados, salários de juízes, de oficiais de justiça, processos, papéis, computadores, telefone, energia, imóveis, dezenas de outros custos. Só que nenhum, ou quase nenhum, sai do orçamento do Executivo.

Sai do orçamento do Judiciário e do trabalhador, o credor. Opera-se, sem se ver, verdadeira transferência de custos orçamentários.

Em vez do Executivo arcar com os juros dos empréstimos que não toma para pagar o que deve, transfere para os orçamentos do juiz e do credor gastos protelatórios. A lentidão do Judiciário atua como parceiro ideal e involuntário desta amarga estratégia. A lógica recôndita da judicialização do déficit é, pois, a velada transferência de custos orçamentários. Para um país que tem que aumentar sua produtividade, é custo improdutivo, desperdício.

Existe, porém, uma quarta alternativa: o devedor negociar com o credor. É o que promete o Presidente Fernando Henrique. De imediato, cerca de cem mil ações se extinguiriam. E cerca de centenas de milhares deixariam de vir a existir. Imensa contribuição para o desafogo do Judiciário. Sobretudo, se a negociação se estender às demais ações em que a jurisprudência consolidada já faz do governo um devedor definitivo.

Quando Ministro da Justiça, Nelson Jobim, com Pedro Malan, obteve um decreto presidencial que dispensava advogados e procuradores da União de apelar nas causas perdidas. A possibilidade legal existe, mas pouco ainda deixa-se de apelar. É um vício processual difícil de curar. Até hoje, só em quatro casos o governo se dispôs a tanto.  Clinton, já disse que, às  vezes, se presidente é como dar ordens num cemitério. Nada acontece. Lá, imagine aqui!

A dúvida agora é como o compromisso do presidente será concretizado. Vai se transformará numa prolongada negociação? O Ministro Dornelles é hábil negociador. Mas não detém a chave do cofre. Aliás, a sinceridade da negociação foi ameaçada pela possibilidade, aberta numa medida provisória,  de encurtar o prazo para os trabalhadores entrarem na justiça para receber seus direitos. O governo nega a intenção. Ameaça inútil.

É inconstitucional. Não funcionará. Basta se ler o voto do Ministro Carlos Velloso em caso semelhante.

A opção do governo em negociar as dívidas que herdou de seus antecessores pode acabar com a judicialização do déficit públicos. Mas deve ser sincera e rápida. Se não, afetará a credibilidade presidencial. Estimula-se o desconforto do Judiciário para com o Executivo. Rouba-se dos trabalhadores a confiança que ainda têm na democracia.