Publicado originalmente na Folha de S. Paulo no dia 03 de setembro de 2000.

Para você existir na Internet, tem de se registrar. Ter um endereço. Ter um nome. Do contrário, ninguém sabe quem é você. Não envia ou recebe e-mails. É como uma empresa que tem de se registrar numa Junta Comercial. Ou um cidadão que, ao nascer, tem de ser registrado em cartório. O cartório da Internet é a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp.

Não importa que você seja paulista ou amazonense. Que seu computador esteja fixo na Paraíba ou no Rio Grande do Sul. Qualquer brasileiro, empresa, jornal, associação, escola ou governo, para existir na Internet, tem que se registrar em São Paulo. E na Fapesp, que detém o monopólio desse registro. Por quê?

Acrescente o seguinte: a taxa de registro do endereço eletrônico é R$ 50. E mais R$ 50 por ano, como taxa de manutenção. Hoje, a Fapesp efetua cerca de 1.200 registros por dia. Existirão, até o fim do ano, de 300 mil a 350 mil registros. Faça as contas. Serão, este ano, algo entre R$ 30 milhões e R$ 40 milhões. A continuar assim, em poucos anos a Fapesp terá recebido centenas de milhões de dólares. Por que esse privilégio? Não se tratou de privilégio. A Fapesp fez por merecer. É instituição séria, de notória competência, com relevantes serviços ao nosso desenvolvimento científico e tecnológico. E, historicamente, a Internet no Brasil nasceu na área científica, e não na industrial, militar, governamental ou comercial.

Quando aqui chegou, a única instituição tecnologicamente capaz, com os equipamentos necessários para processar registros, era a Fapesp. O monopólio não foi uma dádiva política. Foi uma inevitabilidade histórica e um mérito institucional, fundamental contribuição da Fapesp ao Brasil. Hoje, a questão é outra: manter esse monopólio é ainda inevitável? É bom para os usuários? Creio que não. Primeiro, porque não é mais inevitável. Instituições de amparo a pesquisa de outros Estados, Faperj, do Rio de Janeiro, ou Fapepe, de Pernambuco, por exemplo, são também sérias e competentes. Poderiam dispor dos mesmos equipamentos e executar os mesmos serviços. Sem falar de empresas privadas que poderiam se interessar, como acontece em outros países. A Fapesp não é mais a única alternativa.

Segundo, porque monopólios não são do “ethos” da Internet, caracterizada pela ampla liberdade de acesso, de escolha, de valores e de inovação. Haja ver as dificuldades da Microsoft nos EUA -onde, aliás, esse registro é feito por quatro empresas. Com alternativas, o usuário provavelmente teria menores custos e melhor serviço.

Sem falar que o atual monopólio, involuntariamente, contribui para uma ilegalidade. A Fapesp registra os nomes com base no critério do “first come, first serve”. Desconhece os direitos de propriedade intelectual de todos. Viabiliza que indivíduos façam registros ilegais, como ocorreu com o nome de Ayrton Senna. É verdade que quem determinou esse critério foi o Comitê Gestor do Ministério de Ciência e Tecnologia. Mas nada proibiria a Fapesp de consultar o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi) antes de registrar. Mesmo decretados ilegais pelo Judiciário, a Fapesp lava as mãos, faz registros e ignora a tendência jurisprudencial. O que provoca a alegria dos advogados e impõe custos inúteis aos usuários. Um desperdício. Com outros registros, teríamos, provavelmente, serviços legalmente mais cautelosos. Haveria, sobretudo, maior pressão para que o Comitê Gestor alterasse as normas ilegais.

Os milhões de reais arrecadados ficam no caixa da Fapesp, que os utiliza, a partir de vagas disposições do Comitê Gestor, em cursos e treinamentos de Internet. Se acompanhar a tendência dos recursos da área de ciência e tecnologia, 75% desse dinheiro está sendo usado entre São Paulo e Rio. A quebra desse monopólio deveria vir com uma melhor distribuição nacional dos recursos. Deveriam ser usados, por exemplo, para informatizar o próprio Inpi ou as juntas comerciais locais.

Além desses argumentos existiria um, talvez definitivo. A insatisfação com os serviços da Fapesp poderá estimular o questionamento da constitucionalidade desse monopólio. Com chances de sucesso. Se isso acontecer, o poder de regulamentar a Internet no Brasil provavelmente sairia das mãos do Executivo e do setor acadêmico-científico.

Parece ser mais do que conveniente que o país discuta essa regulamentação. A conquista de não se ter estatizado essa área deve ser preservada. Dentro do Comitê Gestor do Ministério de Ciência e Tecnologia há, inclusive, uma tendência para criar um modelo de regulamentação privada. Combinando uma defesa dos interesses nacionais e padrões internacionais, sob a liderança do setor acadêmico-científico em parceria com o mercado. Boa alternativa a considerar. Desde que os cientistas consultassem juristas e advogados, para evitar esse monopólio de constitucionalidade precária, a estimular, lavando as mãos, a ofensa aos direitos de propriedade intelectual dos cidadãos e das empresas. A hora é de descentralizar, democratizar o registro e a regulamentação.

O Brasil deve muito à Fapesp. Mas creio que é do interesse do Ministério de Ciência e Tecnologia, do Comitê Gestor e da própria Fapesp mudar. Como diz Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, todo mundo é composto de mudanças, tomando sempre novas qualidades”.

 

Joaquim Falcão , 56, Mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA), é professor da Faculdade de Direito da UFRJ