A melhor maneira de apresentar este novo livro de Lauro de Oliveira Lima, “Piaget: Sugestão aos educadores”, é segui-lo à risca. Fazer, também, sugestões que ajudem a compreender melhor o trabalho de um, e de outro: Piaget e Lauro. Nossas sugestões começam, então, com uma pergunta, e revêem um depoimento. É o seguinte.

O que distingue nossa civilização contemporânea das que a precederam? O que nos faz ímpar no correr da história? A pergunta é aparentemente imensa. Mas a resposta não precisa ser tanto. Pode ser simples e sugestiva.

Toda civilização se dá sempre um objetivo principal. Os romanos, por exemplo, tinham como principal objetivo à expansão territorial: a pax romana. Já os fenícios, foram à expansão do comércio. Outras se deram objetivos religiosos. E a nossa? Qual seria o objetivo principal, que lhe caracteriza e lhe concede peculiar identidade histórica?

É quase constatação do senso comum, que somos a primeira das civilizações a ter como motor da conquista da felicidade, da saúde e da justiça, a expansão, não de fronteiras físicas ou econômicas, mas justamente a expansão do conhecimento. Não de qualquer conhecimento, é claro. Somos os primeiros a investir na expansão do conhecimento científico especificamente, meio privilegiado a nos assegurar continuidade e progresso. A produção da ciência, como o caminho do ter e do ser, é a tarefa civilizatória por excelência. Não é tarefa isolada de cientistas ou universidades. É de todos: do governo e da empresa. Individual ou coletiva. Jovens e adultos. Noite e dia. Ontem e amanhã. A ciência e a tecnologia são nossos exércitos de conquista e de defesa.

Este nosso compromisso germinal está cada vez mais evidente, neste final de século. Daí a ênfase que hoje os países dão à educação e ao desenvolvimento científico e tecnológico. Tudo indica que, mais do que nunca, inverteu-se o processo. Se é que algum dia foi diferente. Não é o capital que gera conhecimento científico, mas o conhecimento científico que gera capital. Quem detém o processo de sua produção, vence, e domina. Mais apto a eliminar a miséria, prolongar a vida, fazer a justiça.

Por isso, nunca é demais conhecer como os cientistas produzem a ciência: no caso, Jean Piaget inventa e formula teorias, e Lauro Oliveira Lima, inventa sua aplicação. Um ao outro, complementares. Nada mais oportuno, pois, que recordar famoso depoimento de Piaget por ocasião de seus oitenta anos, a que assisti na televisão, em Genebra, enquanto fazia meu doutorado. Perguntaram ao mestre, que conselho daria a um jovem cientista para ter sucesso na profissão. Podendo, assim, acrescento eu, contribuir para o desenvolver da ciência, e do próprio processo civilizatório enfim.

Piaget, se me recordo bem, não deu um, mas três conselhos. Primeiro, recomendou não ler tudo antes, mas tudo depois. Antes que? Depois de que? Antes de, pelo menos, identificado o problema, encontrar a hipótese de trabalho. Eis aí sugestão fundamental. A invenção, a criação, o risco, têm seu primeiro momento justamente na originalidade da hipótese. O primeiro desafio do jovem pesquisador é encontrar uma hipótese que lhe seja sua. O que é extremamente difícil. Pesquisar a hipótese dos outros, por mais identidade e solidariedade que se tenha, pode provocar um distanciamento da intuição, um descompromisso involuntário, que reduz a criatividade necessária. A hipótese não deve resultar de uma adoção, mas, de uma gestação.

Lembrei-me sempre deste conselho quando mestrandos de Sociologia vinham comigo discutir seus projetos de tese na década de 60 e 70. Não foram poucos os que queriam pesquisar o conceito de classe social em Marx… Foi difícil fazê-los encontrar suas hipóteses em si mesmos.

O segundo conselho foi: não ler apenas sobre, mas ler tudo em torno. Este é o conselho da interdisciplinaridade. Na maioria das vezes, o problema e a hipótese que conduzem o pesquisador são moldados, ou melhor, limitados, ou ainda, conformados, por uma disciplina. Para buscar o novo é necessário romper esta conformação. De -formar. Ser inconformado, como o é, no ser e no fazer, Lauro de Oliveira Lima. Romper a forma, os limites, é, sobretudo criar conexões entre disciplinas, gerando nova conformação, ao mesmo problema. E assim, focalizá-lo interdisciplinarmente.

Galileu considerava os sistemas isoladamente, sem medir a influência que um pudesse no outro exercer. Einstein provou não poder existir o isolamento total de um sistema. Os sistemas, por mais eqüidistantes que estejam, sempre se inter-relacionarão. A alteração, que um noutro provocará, dependerá da distância entre eles. Neste sentido, a construção interdisciplinar da hipótese é basicamente um processo que consubstancia a aproximação, antes insuspeitada, de sistemas disciplinares entre si.

Finalmente, o terceiro conselho foi mais contundente. Em francês, disse Piaget : “II faut avoir une tête de turc”. Etnocentrismos à parte, em bom português, quer dizer: é preciso ter cabeça dura. Insistir. Persistir. Pesquisar. A invenção surge da sucessão alternada de erros e acertos. Da disputa entre o acaso e o planejamento. Ou melhor, do planejar o acaso, com obstinação. No caso cearense, com cabeça chata, e dura…

Carlos Drummond de Andrade tem um verso que diz mais ou menos assim: “Que podem as criaturas, se não entre criaturas, amar? Amar, desamar, e até de olhos fechados, amar?” É o mesmo com o pesquisar. Que podem os cientistas, se não entre os fenômenos, pesquisar? Acertar, errar, e até de olhos fechados, procurar?

É impossível pensar este líder piagetiano, Lauro de Oliveira Lima, sem pensá-lo como a corporificação destes conselhos. Sua obsessão e originalidade interdisciplinar, (desde o grupo Capita Plana em Fortaleza, nos idos de 1958 até a criação em 1972 do Centro Experimental Jean Piaget e da escola A chave do Tamanho), o torna educador e pesquisador ímpar. Sempre a inventar, como todo bom inventor, polemicamente, caminhos do novo.

Obstinação continuada que nos chega até hoje neste livro. Quando vista esta tarefa incompleta do Brasil – a alfabetização – a partir dos princípios piagetianos. Quando focaliza as dinâmicas de grupo como intercâmbio entre educandos indutores do desequilíbrio cognitivo.  Ou ainda, quando afirma que o livro didático não pode mais ser o grande referencial para aprendizagem, e defende as salas de aulas tecnologicamente equipadas para a explosão das informações e do conhecimento.

Em resumo: existem duas maneiras básicas de se ler este livro. A primeira, e mais usual, focaliza o conteúdo de seus textos. E aos de Lauro, acrescente-se os de Eduardo Diatay Bezerra de Menezes (Universidade do Ceará) com base em sua tese de doutoramento e agudo senso crítico: – “o modismo no Brasil é reduzir a complexa concepção de Piaget a isso que chamam de construtivismo”, David Elkind (Universidade de Rochester) – “um ser humano que não inventa nem descobre nada… tecnicamente não é um homem autêntico, pois a inteligência é a característica fundamental da espécie”, Esther Pillar Grossi (GEEMPA – Porto Alegre) – estuda as razões cognitivas para os altos índices de abandono e repetência nas escolas públicas, inclusive o de Bárbara Freitag, contribuindo com reflexões que plantam os paralelos entre as obras de Piaget e Vygotsky, este último “descoberto” recentemente no Brasil, e que, também, comemora o centenário de nascimento.

A outra maneira, e aqui fica sugestão à guisa de prefácio, é focalizá-los a partir destes conselhos de Piaget. O que nos permite compreender a contribuição de Jean Piaget na teoria, e Lauro de Oliveira Lima, na prática, na tarefa civilizatória que nos justifica e nos sobrevive.

* Joaquim Falcão, 2005