Publicado na Revista Época no dia 29.05.2017 ( Acesse aqui )

Estamos combatendo a roubalheira do jeito certo?

O combate à corrupção é histórico e torna o Brasil um país admirado no mundo inteiro. Mas surge a dúvida sobre a capacidade dos partidos políticos de resistir ao rolo compressor

MARCEU VIEIRA – 29/05/2017

Debatedores Corrupção: Joaquim Falcão e Octavio Amorim Neto

Cheios de discordâncias, mas num clima amistoso, dois analistas refinados do momento histórico por que passa o país aceitaram o convite de ÉPOCA para debater o combate à corrupção. Encontraram-se o jurista Joaquim Falcão, de 73 anos, e o cientista político Octavio Amorim Neto, de 52. Entusiasta da nova geração de procuradores do Ministério Público, Falcão acredita que o exemplo deles e do juiz Sergio Moro propicia o surgimento de um novo modelo de ação da Justiça no Brasil. Já Amorim Neto, apesar de aplaudir o golpe na impunidade dos políticos, teme que o desmanche dos maiores partidos comprometa a saída da crise. “Para sair de crise é preciso ter lideranças, e elas estão sendo decapitadas”, diz. Falcão, crítico do garantismo que adia a prisão dos réus graças à quantidade de instâncias no país, vai na contramão: “Os líderes hoje são os mesmos de 1968, como Serra, Fernando Henrique, Lula, Dilma… É preciso o surgimento de novos, oxigenar, renovar”.

ÉPOCA – O combate à corrupção está no caminho certo?

Octavio Amorim Neto – Em linhas gerais, sim. Tudo aponta para um cenário em que o Brasil vai se tornando menos tolerante com a corrupção. A impunidade está sendo reduzida. Agora, há excessos por parte do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. Como analista político, tenho por obrigação identificar também as consequências não antecipadas da ação humana. Gosto de lembrar que, apesar das virtudes da Lava Jato, ela pode ter consequências negativas não intencionais e não antecipadas. Vemos, desde 2015, o enfraquecimento e a perda de credibilidade dos grandes partidos. Depois do que soubemos ultimamente [a acusação do empresário Joesley Batista contra o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves, do PSDB-MG], somado ao que sabíamos com as delações da Odebrecht, pode acontecer um colapso do sistema partidário que tem conduzido nosso regime democrático desde 1985 e se consolidou a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994.

ÉPOCA – Esses partidos sumiriam?

Amorim Neto – Esses partidos seriam muito enfraquecidos, poderiam ser substituídos. Mas a transição de um sistema partidário para outro não se faz em uma eleição, não se faz em poucos meses. É processo para uma década. E, enquanto se reconfigura um novo sistema partidário, a governança s fica muito mais difícil. O país tem desafios enormes – sair desta recessão e voltar a enfrentar as questões sociais. Tudo fica mais difícil com o sistema partidário em frangalhos, enquanto um outro vai sendo constituído.

ÉPOCA – Professor Joaquim Falcão, o senhor concorda?

Joaquim Falcão – Faço uma distinção [em relação ao que disse Amorim Neto]. Quem está conduzindo [o combate à corrupção]? Vejo alguns condutores básicos. O Ministério Público [MP], o Judiciário, que está num bom caminho. O Judiciário de que falo inclui todas as autoridades de vigilância e julgamento. Estamos avançando bastante nisso. Outro condutor é o Legislativo. Nesse, não sei se estamos avançando. Porque você tem claramente uma reação do Congresso e dos Legislativos estaduais. Há no meio deles um silêncio obsequioso, como se fala na linguagem diplomática. Eles [os legisladores] não estão liderando em seus âmbitos o processo de combate à corrupção. Há uma inércia dos Legislativos. Qualquer generalização está errada, mas, se eu tivesse de fazer um overlooking [uma visão panorâmica] dessa história, é o que eu diria. O terceiro condutor é o Executivo. E do Executivo, ao contrário, não há condução alguma do combate à corrupção. Você tem uma espécie de autodefesa, de silêncio. Você não vê um governador, um prefeito assumindo uma liderança local ou nacional nesse combate.

Amorim Neto – Mas não foi o Congresso que votou a Lei da Delação Premiada em 2013?

Falcão – É verdade. Mas isso foi uma reação às ruas. Algo que tem de ser creditado ao Congresso, mas não foi iniciativa do Congresso. Aí, você me pergunta: esses são alguns condutores, quais são os outros? Bom, outro é a elite empresarial, que está perplexa, sem um caminho. O que a gente vê com a Lava Jato não é um problema dos políticos, é da relação dos políticos com as grandes empresas. E as associações de classe das grandes empresas, das indústrias e do comércio estão paralisadas. Se parte das empresas, e tenho certeza que é a minoria, cometeu esses ilícitos todos, os líderes deveriam estar defendendo o combate à corrupção e avançando com propostas. Não vemos isso.

Amorim Neto – Concordo neste ponto, que o grande problema está na relação da classe política com a empresarial. Mas, só para lembrar outro dado, a relação do cidadão com a administração pública no Brasil tem melhorado ao longo do tempo, independentemente da Lava Jato. Lembro uma pesquisa realizada em toda a América Latina pela Universidade Vanderbilt [nos Estados Unidos], em 2012, 2013. Ela mostra que, no Brasil, tem havido queda na corrupção. Os funcionários públicos achacam cada vez menos o cidadão.

“Jovens que querem atuar, desiludidos com a política, optaram pelo MP e pelo Judiciário. E é preciso oxigenar a política”

JOAQUIM FALCÃO

ÉPOCA – O senhor fala da corrupção miúda?

Amorim Neto – A corrupção miúda na relação do cidadão com a administração pública, o médico, o policial, os funcionários do Estado que lidam diretamente com a população.

Falcão – Há um ponto aí que é o parâmetro a partir do qual a gente julga o presente. Em geral, se o parâmetro é nossa História recente, o Brasil progrediu, a democracia progrediu. Houve elevação da renda e da cidadania, inclusão social, universalização dos serviços públicos. Isso se a gente pensa em 1988. É um bom marco. E por causa da Constituição.

Amorim Neto – Feita por esses partidos hoje desacreditados…

Falcão – Aí não sei. Foi feita pela cidadania. Nas “Diretas já” e no movimento da Constituinte, os partidos tiveram papel muito pequeno na mobilização. Nas “Diretas já”, quais foram os líderes? A OAB, a CNBB, a classe artística, as organizações sociais. Não foram os partidos. Acho que esse é um ponto de diferenciação entre nós, Octavio.

ÉPOCA – Parece haver outra discordância: o professor Falcão escreveu um artigo elogioso à nova geração do MP. O senhor poderia falar um pouco mais sobre isso?

Falcão – São dois aspectos. Um é a nova geração. Não só no MP, mas também nos partidos, no Congresso, na Polícia Federal, no Judiciário. O Brasil precisa se ver livre de seu passado de 1968, de 1964. Os líderes que a gente tem aí, nos grandes partidos, vêm do combate ao período militar. Você tem Fernando Henrique, Lula, Dilma, Serra… São os mesmos desde 1968. É preciso oxigenar. Ter novas lideranças. Não vai haver vida partidária nova com a geração [velha] que está aí. Não estou defendendo a geração futura, dizendo que é boa. Estou dizendo que as estruturas partidárias e de representação que temos consolidaram [no comando] uma geração.

ÉPOCA – E isso já mudou no Ministério Público?

Falcão – Gosto de citar uma pesquisa para a qual a professora Ruth Cardoso [antropóloga falecida em 2008, casada com o ex-presidente Fernando Henrique] me chamou para a banca de doutorado. Era sobre os MPs, em Campinas. Dizia o seguinte: por que os jovens iam para o MP? E a resposta principal era: como estavam desiludidos com a política, a política partidária não dava espaços, e queriam atuar, eles optaram pelo MP, pelo Judiciário.

Amorim Neto – Ou seja, eles querem substituir os partidos…

Falcão – Não! Eles têm interesse genuíno no processo nacional.

Amorim Neto – Mas não cabe a eles liderar o processo. É o risco que corremos hoje, ter um governo de juízes. Acho que a Lava Jato não tem volta. Mas, hoje, o processo político está amarrado pelos ritos, métodos e ritmo do Judiciário e do MP. Compreendo as razões pelas quais chegamos aonde chegamos. Mas estamos num impasse. O país não tem meios de sair da crise profunda, econômica e política, que enfrenta hoje. Para sair de uma crise é preciso liderança, e as lideranças foram decapitadas, no Executivo e no Legislativo.

Falcão – Por quê, hein?

Amorim Neto – Pelas razões que estamos discutindo aqui, é escândalo de corrupção o tempo inteiro.

Falcão – Então, não é culpa da Lava Jato!

Amorim Neto – Não é culpa! Mas, temos de reconhecer, estamos sem meios políticos para sair da pindaíba.

ÉPOCA – A democracia no Brasil enfrenta seu maior teste?

Amorim Neto – Não acho que a democracia esteja em crise. O desafio não é para a democracia, mas para o sistema partidário. Acho que a democracia no Brasil está bem, pelos nossos padrões históricos. Muito bem, por sinal.

“Corremos o risco de ter um governo de juízes. O processo político está amarrado pelos ritos do Judiciário”

OCTAVIO AMORIM NETO

ÉPOCA – O senhor concorda, professor Falcão?

Falcão – Não. Acho que existe um “teste de estresse” das democracias no mundo inteiro. E nós o vivemos também. Cada país tem seu problema. No Brasil, não é questão de discriminação racial ou contra imigrantes. É corrupção. Também é desigualdade. De acordo com a Freedom House [ONG americana de pesquisa sobre democracia e direitos humanos], o século passado começou com 14 países considerados democráticos. No fim do século, eram 120. O que caracterizou o século passado foi a opção pela democracia como modelo ideal de convivência. Este vai ser o século do “teste de estresse” das democracias.

Amorim Neto – No caso específico do Brasil, a gente tem evoluído. Olhando para a História…

Falcão – Aí a gente volta àquela questão: por qual padrão você julga o presente? O século passado foi ótimo, porque fez a opção pela democracia. Foi um avanço. Agora, para avançar mais, é preciso saber se a democracia vai produzir igualdade, liberdade, cumprimento da lei.

Amorim Neto – Não nego isso, mas, da perspectiva brasileira, não estamos tão mal como democracia. As instituições estão funcionando. Uma das poucas coisas que contribuem para o Brasil ter uma boa imagem é justamente a Lava Jato, o combate à corrupção.

ÉPOCA – Qual é a posição dos senhores sobre o garantismo? Sobre haver prisão antes de julgamento na última instância?

Falcão – Quando a maioria dos países está num padrão e você não, você está errado. Não conheço outros países com graus de recursos e instâncias como temos aqui. A ministra Cármen Lúcia disse que recebeu 12 recursos num só processo no Supremo. Quer dizer, estão confundindo o conceito de devido processo legal. Não pode ser mais uma estratégia de plantar nulidade para colher prescrição. O garantismo, em nome de um ideal democrático, o direito de defesa, está impedindo o exercício pleno do Judiciário. Nos países que temos como referência, não há esse grau de recursos. Duas instâncias bastam. Ser julgado por um juiz e um colegiado é suficiente para o cumprimento da lei, para o devido processo.

Amorim Neto – Esse assunto é para jurista, não é comigo.

ÉPOCA – Para onde o Brasil deve caminhar a partir das descobertas da Lava Jato?

Amorim Neto – Vai depender das condições em que o país chegar às eleições de 2018. O momento atual é importantíssimo, porque pode comprometer a chegada a 2018. Na primeira década do século XXI, o Brasil combinou o que nunca antes havia combinado – democracia, crescimento, inclusão social e prestígio internacional sem precedentes. Hoje, com exceção da democracia, o restante está todo comprometido.

Falcão – Concordo com o Octavio. Há uma questão básica, desigualdade e concentração de riqueza. Enquanto não enfrentarmos isso, estaremos sempre sujeitos a crises e com o futuro incerto. Mas Octavio, tenha mais esperança na Lava Jato… [risos].

Amorim Neto – [Também rindo] Tenho esperança por um lado, mas ressalvas por outro.