Artigo publicado no jornal Correio Braziliense no dia 04/01/2017. (Acesse aqui)

O decreto legislativo do Congresso que invalidou o disfarçado aumento dos preços das passagens através da permissão de cobrança das bagagens teve como base o artigo 49, V, da Constituição. Esse artigo chama-se veto legislativo. Diz o seguinte: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”. Teve origem no projeto de constituição da Comissão Afonso Arinos -art. 99, XII.

Sua finalidade foi e é muito clara. Evitar que a delegação da competência normativa efetuada pelo Congresso ao Executivo, agora por meio das agências, revivesse autoritarismo do Executivo. Foi, com honra, proposta de minha iniciativa. Estávamos em 1987. Era preciso reequilibrar os poderes. Trata-se de um freio, num regime de freios e contrapesos.

Com o estado democrático de direito, o instrumento maior do autoritarismo deixou de ser a força física, material, dos militares e seus derivativos jurídicos, os atos institucionais e o conceito de segurança nacional. Hoje, a concentração do poder no Executivo, na administração pública em geral, reveste-se de outras roupagens. Trata-se, como temos visto, do exercício aparentemente legal, de competências constitucionais deturpadas.

Os dois exemplos mais expressivos têm sido o abuso das medidas provisórias e as liminares individuais de ministros do Supremo. O instrumento maior do abuso tem sido o conceito de discricionariedade administrativa. Que pode ser tanto do Executivo, quando do Legislativo e do Judiciário. Exemplos também não faltam. A cada um, o que é seu: o controle da pauta de sessão do Supremo, os empréstimos dos bancos públicos e a ordem da votação do Congresso.

São competências privatizadas por interesses além do interesse público. Parecem democráticos, mas não são. Uma das consequências judiciais da ausência de controle foi a banalização do mandado de segurança e do habeas corpus. “Muita vez”, diria meu professor Moreira Alves (em vez do corriqueiro “muitas vezes”), o nome desse autoritarismo chama-se agência independente.

Não é mais o canhão que sustenta o abuso do poder. É o conceito jurídico. É a necessária discricionariedade administrativa, quando sem controle. Em passado recente, a Anatel poderia desconectar, mediante um desburocratizado pedido do proprietário, o celular quando ele lhe fosse roubado. O que já era tecnologicamente possível. Tornando inútil o celular roubado.

A recusa administrativa da Anatel, debaixo dos mais dignificantes argumentos e interesses de empresas do setor, estimulou a violência no Brasil e os roubos de celulares. De modo que hoje quase todos nós, amigos ou parentes, já tivemos, algum dia, o celular roubado. Estimulou-se a violência urbana mais do que o desemprego.

Quando, uns seis meses atrás, a Anac disse que estava analisando a cobrança de bagagem, não era o começo. Era o fim. Era o anúncio de que cobraria. Cabra marcado para morrer. Estava já tudo decidido.

Daí em diante foi apenas tentativa de dourar a pílula contra o consumidor, com o marketing de audiências, de estudos técnicos e de escutar a sociedade. Ou alguém acha que a Anac produziria estudos técnicos, ouviria a sociedade e a permissão não viria?

Argumenta-se que quem paga hoje a bagagem dos outros são os pobres. Ou que tanto vai estimular a vinda de companhias aéreas estrangeiras de low cost. Argumentos que são apenas tentativas de legalização, a posteriori, da discricionariedade previamente decidida. Tanto que a Anac poderia, por exemplo, estabelecer que somente as companhias aéreas de low cost poderiam cobrar. Não o fez.

Bem faz a OAB, e seu presidente Claudio Lamachia, em levar esse assunto ao Judiciário. Como de resto, o veto legislativo, se vier a ser contestado pelo Senado ou pela Câmara, também poderá ir ao Judiciário.

Não adianta escutar os usuários para não os ouvir.