Artigo publicado no site Jota, em 12.02.2015 (Acesse aqui)

Não se enganem. Todo este discurso e movimentação do novo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, a primeira vista interpretados como disputa de poder com a Presidência da República, ou do PMDB com o PT, pode acabar mais longe. Pode acabar numa disputa de poder entre o Congresso e o Supremo.

Um pouco de história das doutrinas jurídicas logo tudo esclarece. No regime autoritário de 64, vivíamos um ordenamento jurídico que se parecia com uma hidra de duas cabeças. Ou uma pirâmide jurídica kelseniana de dois topos.

De um lado havia os atos institucionais, dos militares. De outro, havia legislação constitucional, de 1946 e depois de l967 e l969, dos deputados e senadores. Aqueles eram onipotentes por sua própria natureza. Pela vitória das armas.

Estes eram onipotentes porque o Congresso, mesmo cerceado e limitado pelas eleições indiretas, pelos decretos lei e decurso de prazo, por exemplo, dificilmente podia ter suas leis contestadas . Nem fora dele, nos tribunais e nas ruas. Nem dentro dele, pelas oposições manietadas.

O resultado é que vivíamos um período onde o que prevalecia no mundo jurídico era a onipotência do legislador. Fossem eles os responsáveis pelos atos institucionais, pelas leis, ou pelos decretos leis. Estivessem no Executivo ou no Legislativo.

A prática jurídica e suas doutrinas, dos tribunais, dos escritórios e das faculdades, começavam somente depois da lei ou do ato. A lei era um dogma não discutido. Aplicado.

A partir de 1988, em boa hora, assistimos à reação do Poder Judiciário, sobretudo do Supremo. Uma de suas armas favoritas foi a intepretação constitucional.

A teoria dos princípios e das ponderações libertou o Supremo da onipotência dos legisladores. Mas talvez tenha se excedido. Para muitos, libertou o Supremo  dos próprios constituintes.

Não raramente em nome de deter a palavra final, alguns ministros quase diziam: “a constituição sou eu”. Às vezes dizem ainda. Mas esta não é posição majoritária. É apenas um risco num Supremo muito monocrático.

A libertação do Supremo foi auxiliada pela doutrina política do presidencialismo de coalizão, que transformou o Congresso num quase submisso aliado de ocasião, mas permanente, do Executivo. Voz sem som.

O que Eduardo Cunha  busca é nova  potência do Congresso. Contra tanto a onipotência do Executivo, herdada de nossa história, do regime militar e do presidencialismo de coalizão, quanto a onipotência do Judiciário, estimulada pela constituição de 1988, aliada a doutrinas jurídicas pós-positivistas.

O símbolo desta reação, estrategicamente escolhido, um símbolo não político, e que tem o apoio da maioria da sociedade, é sua oposição ao aborto. Venha de onde vier, inclusive do Supremo, não passará. Promete.

Conseguirá o Congresso reagir ao Executivo e ao Judiciário? Não sabemos. É sincero? Resistirá à tentação de cargos e orçamentos no Executivo?  Não sabemos.

Vamos ter muitos testes a observar, como a próxima escolha do ministro do Supremo. Será ele um ministro da Presidência sozinha e do PT, ou do Congresso e do PMDB também?

Algo, porém, é certo. Não existem onipotências.